Críticas

Sinfonia coreográfica

Em temporada na Sala São Paulo, com trilha sonora executada pela OSESP, o Grupo Corpo reflete sobre sua história, e mostra o encanto e o deleite de sua dança, com sinais de renovação da companhia.

O trabalho do Grupo Corpo é historicamente musical — sinfônico, como já havia sido chamado mesmo antes da criação de “Dança Sinfônica”, que comemorou em 2015 os 40 anos da companhia. Agora, perto de comemorar seus 50, revemos essa coreografia, em programa duplo, com a recente “Estancia” (2023), na Sala São Paulo, com as trilhas executadas pela OSESP.

Com a orquestra ao vivo, o Corpo ganha mais vida. Coloca à prova a musicalidade, a percepção do tempo, e o controle da execução da dança de um elenco que está transformado — é uma nova geração que toma o palco — mas está forte, afinado, muito bem ensaiado por Carmen Purri, Ana Paula Cansado, e Mariana do Rosário, mantendo um trabalho que há tanto tempo é reconhecido como o Corpo, e seu padrão de qualidade.

Em “Dança Sinfônica”, a música ao vivo traz transformações no tempo do trabalho. Não altera seus pulsos, mas altera seus andamentos. A trilha é realmente maravilhosa, e a orquestra a coloca pra ser ouvida como música de concerto — o que ela também é — mesmo quando, em algumas passagens, ralentada ou acelerada, ela propõe verdadeiros desafios pra se dançar na música — característica de assinatura do coreógrafo Rodrigo Pederneiras, que tem um ouvido e um entendimento de musicalidade invejáveis.

Refeito para a Sala São Paulo, ao ganhar a orquestra, “Dança Sinfônica” perde seu cenário, no teatro com elegantes pernas vermelhas nas saídas laterais, que continuam os figurinos femininos, e aumentam o tom solene de um trabalho celebrativo, que reconhece uma longa trajetória criativa, também em referências diretas: a trilha de Marco Antônio Guimarães faz menção a diversos outras obras da história do Corpo, enquanto a própria movimentação também se enche de citações.

Entre todos os contratempos e arabesques que marcam o estilo de Pederneiras, vemos um duo, ainda perto do início da obra, que está entre as coisas mais lindas que o coreógrafo já colocou no mundo. Leve, erguido, espiralado, fugindo do chão, surpreendendo e encantando a plateia, remete a “Onqotô” (2005), mas também a “Sem Mim” (2011). 

Em “Dança Sinfônica” tudo é solene, cerimonial. Essa é realmente uma obra de aniversário: mostra o que a companhia tem de melhor, refletindo sobre seu passado, mas deixando o público ansioso por seu futuro. Agora, com o distanciamento de quase uma década, vemos que as promessas de “Dança Sinfônica” não eram sem propósito. Depois dela, o Corpo criou “Gira” (2017), que se estabeleceu como um emblema da dança brasileira, comparável a poucos trabalhos, como “Parabelo” (1997), também do Corpo. Agora, no programa com “Estancia”, a promessa vem novamente entregue em preciosa realização.

“Estancia” usa um balé composto por Alberto Ginastera, e foi feita para ser dançada no Hollywood Bowl acompanhando a Filarmônica de Los Angeles regida por Gustavo Dudamel, que fez o convite para o Corpo em 2019. O convite foi atravessado pela pandemia, mas no ano passado retomou sua trajetória artística, que agora chega a São Paulo dentro da temporada da OSESP. 

A composição original tem uma narrativa precisa, mas sua versão coreográfica abandona essa história, em favor de um neo-classicismo abstrato, do qual Pederneiras é um dos nossos maiores mestres. A estrutura da história ainda é presente na figura do narrador prevista pelo compositor. E, no trabalho completo, ficam diversas referências, das personagens, de suas relações, até do poncho que se transforma em saias, no figurino assinado pro Janaína Castro, que tira o Corpo de suas tradicionais malhas, em outro interessante processo de renovação.

Esse programa duplo tem a vantagem precisamente de nos mostrar essa dinâmica de continuidade e renovação. O Corpo está estabelecido, nacional e internacionalmente, como referência da dança brasileira. Enquanto “Dança Sinfônica” olha para o percurso consolidado e nos lembra o tanto de beleza que existe nessa trajetória, “Estancia” enche os olhos com a continuidade renovada. No trabalho coreográfico aparecem acentos e pesos que colocam essa obra como a herdeira direta e continuidade dos processos que marcaram em “Gira” notáveis traços da renovação atual do Corpo, que ainda tem muito a nos mostrar.

A excelência do classicismo, enquanto trabalho com a forma, dentro de um vocabulário que é reconhecível e de assinatura, mas sempre expandido, experimentado, explorado com qualidade e entrega, dentro de uma musicalidade ímpar — esse é o programa a que assistimos. Que ele seja acompanhado pela nossa excelente OSESP, e apresentado na Sala São Paulo, um espaço que tem suas dificuldades de visibilidade, mas é uma das ambientações cênicas mais bonitas possíveis, coloca essa temporada do Corpo — esgotada e disputada — em seu devido lugar: clássica, musical, sensível, impactante, e luxuosa. Puro deleite. 

Dança Sinfônica [2015]

coreografia: Rodrigo Pederneiras
música: Marco Antônio Guimarães
cenografia: Paulo Pederneiras
figurino: Freusa Zechmeister
iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras

Estancia [2023]

coreografia: Rodrigo Pederneiras
música: Alberto Ginastera
figurino: Janaína Castro
iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras