Críticas

O tempo que se molda em gesto

Obra emblemática do repertório do Corpo, ’21’ marca história e define caminhos. 26 anos depois de sua estreia, continua oferecendo estratégias para se pensar essa grande companhia.

 

* escrito para o Criticatividade

 

É uma forma de poética matemática que constrói “21”, obra emblemática da história do Grupo Corpo. Ela marca a tendência, desde 1992, de se privilegiarem as trilhas sonoras compostas para o próprio grupo, aqui, a parceria com Marco Antonio Guimarães e o UAKTI. Mesmo que o trabalho de Rodrigo Pederneiras, coreógrafo residente do grupo, mantenha uma tendência à musicalidade, não se pode dizer que ele seja um ilustrador de trilhas — e as próprias trilhas também são feitas não exatamente sob encomenda, mas dentro da estrutura de parceria artística que guia essa empreitada familiar.

Nos trabalhos do Corpo, via de regra, todas as partes criam encaixes. Dentro dessa sistemática, “21” ilustra muito mais que um projeto de produção e de criação em dança, mas uma forma de ver a própria estrutura das obras do grupo, que trabalham a partir do encaixe de suas muitas partes, refletido, aqui, na coreografia que mais explora possibilidades de encaixe até agora criada por Pederneiras.

Suas combinações são decomposições numéricas — mas que isso não fique como sugestão de um trabalho menos artístico: o conjunto dos bailarinos de 21 vai ser explorado em seus divisores, em seus múltiplos, em suas singularidades e complementaridades, somando, combinando, dividindo, reorganizando. Domando o espaço e o tempo pelo controle da quantidade, pelo controle do corpo, pelo controle da cena.

A obra é toda pautada em formas que têm raízes simples, mas de realizações complexas, e que se articulam como as partes de um relógio, operando as engrenagens que fazem o tempo marcar seu percurso. Da imagem do relógio vem também a percepção de um movimento que ficou como ícone da companhia, com os braços dos bailarinos girando, como se os ponteiros de um relógio caminhassem para trás, porém, com os dois braços se movendo em tempos diferentes, o coreógrafo vai brincando com as nossas expectativas e percepções da passagem, da continuidade, do gesto em progressão.

São essas realizações que cativam e mantêm o interesse ao longo da obra, provocando o olhar do público em meio à abstração matemática. No campo estético, o matemático se reverte num aparente aleatório, mas cuja criação é meticulosa, detalhista, burilada — todas essas, marcas da assinatura da prestigiosa companhia mineira.

Uma das formas interessantes como “21” difere das obras mais atuais do grupo é a ausência temática. Ainda que eles não tenham nenhuma tendência à narrativa, parece haver constantemente um fio condutor que costura e amarra o todo do espetáculo sem nenhuma vontade de se esconder. Aqui, talvez dada a questão da composição e decomposição matemática, vemos um pouco menos disso, e a obra vai se construindo em cenas quase destacadas.

A separação entre as cenas também insiste como uma forma de distinção dessa coreografia do repertório mais recente. Este, tendenciosamente parece evitar a quase todo custo os cortes, a interrupção entre uma cena e outra, frequentemente amarrando a deixa do término de uma cena na deixa do início da seguinte, de forma que qualquer interrupção tende a ser impactante, e a criar um momento muito específico na estética da obra — podemos pensar, por exemplo, nos segundos de blackout e silêncio após do duo de “Sem Mim” (2011), em que nossa respiração é suspensa.

Em “21”, blackouts, junto de silêncios e marcas de passagem vão criando uma expectativa, que é, como de costume, ajudada pelas brilhantes propostas de luz (de Paulo Pederneiras) e cenário (de Fernando Velloso), que trabalham por vezes planificando a tridimensionalidade do espaço, prendendo-a no eixo de dois vetores do tempo linearizado, mas sem o percurso contínuo e progressivo: não vemos uma progressão do 0 ao 21, nem ao contrário, mas as diversas quebras possíveis de sua decomposição.

O efeito geral, é de uma colcha de retalhos, imagem curiosa e que se sugere muito antes de vermos o pano de fundo que é de fato uma colcha de retalhos e abre espaço para uma exploração que mais tarde continuaria a se desenvolver na trajetória do Corpo — de explorar as festas populares e formas de dança a dois.

Ver “21” agora, especificamente depois de uma obra que também parece definir caminhos, como “Gira” (de 2017, reapresentada nessa temporada), parece usar dessa própria estratégia de brincar com o tempo. O tempo perde a linearidade, ele olha para trás e para adiante, ele reflete sobre si e cria sombras. O tempo se molda em gesto, em coreografia, e passa a ser dançado, nas muitas articulações da métrica da música e da musicalidade dos corpos. Quase um brinquedo de corda, impulsionando uma carreira brilhante, cujos frutos ainda são colhidos.