Críticas

SUB / Extremely Close / Casi Casa | Compañia Nacional de Danza de España

Em sua primeira passagem por Paris, a Compañia Nacional de Danza de España se apresentou em temporada na série TranscenDanses do Théâtre des Champs-Elysées, num programa triplo que reuniu coreografias criadas por Mats Ek, Itzik Galili e Alejando Cerrudo. As três coreografias, criadas em 2009 para três diferentes companhias, foram incorporadas, em 2012 e anos seguintes, ao repertório da CND, sob a direção de José Martinez desde 2011.

Trazer a companhia, sob a direção de Martinez, para Paris parece um processo natural. O  bailarino espanhol foi solista do Ballet de l’Opéra de Paris por diversos anos, voltando para a Espanha para assumir a direção da CND no momento de sua aposentadoria do Opéra.

A grande fama da companhia está construída, sobretudo, na emblemática figura de Nacho Duato, coreógrafo e diretor da CND por duas décadas. Porém, nenhuma coreografia de Duato veio nesse programa, com o qual o diretor atual propõe ilustrar a nova missão da CND, vista por ele em três eixos diferentes: apresentar grande coreógrafos atuais; abrir espaço aos novos talentos espanhóis, e fazer um retorno ao estilo clássico e neoclássico. Esse terceiro ponto foi colocado de lado para trazer a obra de Mats Ek, que tem ligação direta com a França, sendo derivada de uma coreografia dele para o Opéra. O programa se propõe a mostrar os melhores traços da CND, num grande esforço de divulgação de um trabalho, até o momento, pouco reconhecido na França.

O programa parisiense é recebido com bastante curiosidade. Além de as três obras fazerem suas estreias francesas nesse momento, aqui, os trabalhos de Galili e, sobretudo, Cerrudo, não vêm com tanta fama. Paralelo interessante com o Brasil, onde Cerrudo também seria novidade, mas encontramos três criações do israelense Itzik Galili, para o Balé da Cidade de São Paulo.

SUB, a coreografia de Galili desse programa, foi originalmente criada para ser parte de um tríptico do coreógrafo. A exploração que ele propõe, da força e da energia do corpo em movimento, nesse programa ficou posta como demonstração da qualidade e da potência dos bailarinos da CND. O público entra em contato com a companhia por um acesso restrito, mas interessante: ainda que muito possa ser dito sobre os usos do virtuosismo na dança, a trabalho técnico continua sendo bastante cobrado tanto por públicos quanto por críticos.

Nesse sentido, é particularmente interessante a característica de moldura do trabalho: ao mesmo tempo em que a obra está emoldurando e preparando para apresentação essa companhia em um dos grandes centros de validação da dança que é Paris, internamente também é possível ver a articulação dessa característica. O trabalho do coreógrafo, há muito interessado na relação dos corpos com a luz, propõe uma ambientação que fecha, no palco, os bailarinos dentro de uma moldura de luz – há luzes diretas vindo das varas e também do chão, delimitando o espaço da cena e prendendo os bailarinos, ao longo de toda a coreografia, dentro dela.

Assim como a coreografia vem emoldurada pela iluminação, também os corpos dos bailarinos vêm emoldurados pelo figurino. Os sete homens que dançam SUB, o fazem de torso nu, vestindo uma espécie de trench coat preso apenas na cintura: mais uma divulgação dos talentos da CND. Quanto ao movimento, porém, não é fácil pontuar um tema. Se a um passo o título pode sugerir a submissão, e as relações de controle, ainda que vejamos em cena relações de força, não há material suficiente para sugerir o que de fato quer dizer esse sub do título.

Se há dominação em cena, ela é imposta pela moldura, não pela coreografia em si., colocando os bailarinos como iguais, todos na mesma força, concentrada, intensa, prestes a explodir, mas com apenas pequenas detonações em cena. Talvez ai, então, estejam dominados. Por si mesmos, pelo autocontrole. Há algo escondido, algo preso dentro daquela moldura: a luz, como recorte e limite, se fecha como o contorno de um universo que, mesmo que não tenha um enredo, tem tensão.

Contrariamente, a coreografia seguinte, Extremely Close, do espanhol Alejandro Cerrudo, trabalha com a leveza. Criada originalmente para o Hubbart Street Dance de Chicago, e trazida há três anos para a CND, a obra se constrói a partir da relação da música de Philipp Glass e Dustin O’Halloran. O piano, repetitivo e, ao mesmo tempo, dinâmico, criando novos e novos padrões, suspende o tempo da obra do tempo do público.

Somos colocados num lugar novo e fora da realidade cotidiana, o que já se anuncia pelo espaço da cena. Dançando sobre um tapete coberto de penas brancas soltas, os bailarinos surgem e desaparecem em cena por detrás de três grandes painéis móveis, que reformatam constantemente o espaço do palco. A sensação é da descoberta constante. Não se sabe quando um painel vai se mover e quem surge atras dele.

Mesmo a mobilidade dos painéis é questionada: se a um passo eles vagam pela cena, a outro eles resistem, fixos como paredes onde os bailarinos podem se apoiar, sobre as quais podem caminhar na horizontal, e que os arrastam de volta para fora da cena. Se estão presos entre quatro paredes, essas paredes são inconstantes, e mantém em cena o tempo todo a surpresa da redescoberta. Do público com a obra, e dos bailarinos entre si.

Metaforicamente tão leves quanto as penas, os painéis ajudam a compor o tom geral da obra, de doçura e leveza, que se pegam pelas pontas dos dedos, envoltas numa simplicidade que abandona enredos. Um único assunto desponta: a proximidade. E ele é explorado em diversas facetas que, segundo o andamento da música, começam mais fortes e intensas para ralentar ao longo da obra, até chegar ao minimalismo do duo final, e terminar com o palco se esvaziando, um bailarino puxando por cima de si o tapete e as penas, se desprendendo do espaço, do tempo, do público e da obra. Ficando apenas extremamente próximo de sua companheira, toda a noção de realidade sendo deixada para trás.

Se a realidade foge na obra de Cerrudo, na coreografia que encerra o programa, Casi Casa, de Mats Ek, ela persiste e insiste. O trabalho do coreógrafo sueco, insistente em discutir aspectos do cotidiano, aqui, parte de um trecho de uma obra familiar – tanto para o público parisiense como para o diretor da companhia. Precisamente, o solo da poltrona, de Appartment, que ele criou para o Ballet de l’Opéra de Paris em 2000 e que foi dançado por José Martinez. Desse solo, de um homem assistindo à TV sentado em sua poltrona, ele desenvolve, no mesmo estilo de Appartement, novas sete cenas para essa Casa.

As relações familiares e amorosas e o papel da mulher no lar são explorados novamente pelo coreógrafo, dentro do seu estilo visual que remete, há muito tempo em sua carreira, a algum passado impreciso. Ainda que o trabalho não seja nem datado, nem uma tentativa de historicizar, a observação de Ek sobre as relações humanas é precisa e insistente: faz questionar o quanto não mudamos, e o quanto ainda agimos da mesma maneira que gerações anteriores.

As cenas, como a da cozinha e do aspirador, colocam em evidência discussões sociais sobre as relações entre homens e mulheres que ainda são relevantes, e levam a uma associação direta da linhagem do coreógrafo: sua mãe, a bailarina e coreógrafa Birgit Cullberg, fundadora do Cullberg Ballet (onde mats Ek foi Diretor Artístico por quase uma década) também tinha preocupações diretas com questões históricas e sociais; e sua coreografia Mademoiselle Julie, sobre o nazismo, além de ser o trabalho que a fez famosa, entrou no repertório do Ballet de l’Opéra de Paris na temporada 2013/2014 – trazendo mais um ponto de contato com o novo público parisiense.

O panorama da CND em Paris vem em bom tempo, abrindo espaço para a descoberta de um novo público em potencial. A escolha do repertório não tenta fazer um elogio do passado da companhia, nem justificar o interesse histórico em seu trabalho. Num outro gancho, na direção oposta, a proposta é mostrar o que a companhia faz agora, e como a dança da CND, sob a direção de Martinez, pode ser relevante para a dança contemporânea, sobretudo na França. A escolha de um coreógrafo nativo, de um já aclamado por aqui, e de outro que apesar de renomado ainda não caiu no gosto dos franceses, mostra o bom entendimento que o diretor tem do público francês, tendo vivido em contato com esse público por tantos anos. Essa primeira temporada parisiense abre uma porta, colocando a companhia em um dos grandes teatros da França, e sugerindo a fixação da capital francesa como mais um dos rumos internacionais da Compañia Nacional de Danza de España.

CND