Críticas

Arte, entre a festa e a tragédia

A experiência de vida dos bailarinos é o ponto de partida de um espetáculo de passinho sincero, tocante, expressivo, que vale a pena assistir mais de uma vez, da Clarin Cia de Dança, numa lição sobre dança independente.

Ou 9 ou 80 é o tipo de obra que transforma. Transforma pelo modo como é feita, sua origem, seu trabalho, seus intérpretes, seu diretor. Mas transforma também por ser assistida. O impacto da sua realização, junto da sua proposta, são o tipo de coisa que tem a potência pra falar com o público, mesmo que distante da realidade que ela retrata, e nos tornar mais gente, mais humanos, mais próximos.  A obra parte do universo do passinho e do funk, com propriedade, misturando bailarinos de SP e RJ, de técnica apurada, e que compartilham suas histórias e experiências de vida na criação dirigida por Kelson Barros.

Representação e representatividade são questões sérias aqui. E ficam na cara desde a primeira cena, que mistura a dança do funk com uma trilha sonora clássica, seguida das letras das músicas de funk, cantadas como canto lírico, ou recitadas como poesia. A mistura do popular e do erudito, grita ecos modernistas. Essa talvez seja a versão da nossa geração da semana de arte moderna. É Os Sapos do Bandeira, como poderia fazer sentido hoje. Uma obra dessas precisa de mais palco e de mais luz: a semana de arte moderna foi o que foi em parte porque ocupava o Theatro Municipal — sonho que faz sentido pra Ou 9 ou 80.

A honestidade da pesquisa pela experiência pessoal, vivida e compartilhada, é o que coloca carne no espetáculo. Os movimentos do passinho, muito bem executados, não são só desafio técnico ou interesse, eles são a dança desses indivíduos. O que transcende e eleva é o como essa experiência se transforma em uma proposta de comunicação artística, costurada não como uma disputa ou demonstração técnica — ainda que seus momentos de demonstração técnica sejam excelentes — mas como história, que mistura a narrativa das letras com a vivência dos bailarinos.

Se o vigor da dança e a execução de alto nível abrem espaço pra uma leveza de apreciação, a Clarin não deixa de lado a seriedade do que discute, sobrepõe remix funk de Michael Jackson com um diálogo sobre arte e trabalho, que emenda com preconceito, violência policial, suspeita e desconfiança, que depois se transforma em um mix de capoeira, voguing e locking, no solo de Yoshi Mhoroox. A referência aos múltiplos ritmos e danças das ruas também caminha pra outros lugares, do quadradinho do solo de DG Fabulloso, pro Afro Funk e o Waacking de André IDD, e o Krump de Iguinho IDD. O resultado dessas variações é a valorização das identidades múltiplas: ninguém é só uma coisa, e diversidade cultural é assunto de todos os cantos.

A alteração de tom é constante, e lembra da situação das vidas que retrata. Se existe construção estética, valor e até exibicionismo, nos bailes e nas periferias, também existe preconceito e violência. Se a leveza da festa aparece em momentos como o solo de RD Ritmado, a violência vem é lembrada com os tiros, que recuperam os dois episódios do título — as 9 mortes no baile em Paraisópolis e os 80 tiros na família na Zona Oeste do Rio de Janeiro —, mas que vem na sequência de coreografias de TikTok, e de um duo de passinho, talvez a melhor demonstração técnica da altura do nível de bailarinos como e Yure IDD e, sobretudo, Pablinho IDD.

Convivem lado a lado a festa e a morte. Realidade incontornável, que traz pra cena a potência das histórias que ela representa, sem escorregar, nem só pra tragédia, nem só pra festa. Não há vitimismo, mas há sentimentos sinceros e doloridos. Poucos deles tão fortes quanto o solo de Mario MLK Bros, e a cena final, com a Pietà de Juju ZL, que dão um tom pesado, mas sem exageros ou falsidades: eles falam de lugares que doem, e deveriam doer em todos.

A construção é toda muito ajudada pela ambientação, mesmo quando a obra é transportada para áreas externas. O linóleo branco, e um detalhe de um tapete vermelho, pra baixo do qual balas vão ser varridas em um momento do espetáculo, junto de um figurino extremamente eficiente de Gabriela Araujo, criam uma aura sensível pro todo do trabalho, dando unidade pra proposta, junto de luzes em algumas apresentações de pouca possibilidade de elaboração, que se aproveitam de estruturas limitadas dos espaços por onde o trabalho circulou, e mostram o valor incomparável da produção independente, que nem sempre recebe a atenção devida. É trabalho de gente de dança, que quer dançar e que faz a dança acontecer.

Ou 9 ou 80 é um daqueles trabalhos que entra na curta lista de coisas que precisam ser vistas por mais gente, por muita gente. Tanta força, tanta potência, tanta dor e tanta celebração, que caminham lado a lado, em realidades pras quais nem sempre olhamos, mas deveríamos, cada vez mais, e que a Clarin nos coloca na cara, com delicadeza, cuidado, elaboração, e, sobretudo, arte.

Direção Artistica: Kelson Barros

Intérpretes Criadores: André Idd, Iguinho Imperador, Juju ZL, Mario MLK Bros, Pablinho Idd, Yoshi Mhoroox, Yure Idd, RD Ritmado – convidado, DG Fabulloso – convidado

Figurino: Gabriela Araújo

Trilha: Dj Seduty

Design de Luz: Renato Lopes

Fotos: Sergio Fernandes

Produtor: Dafne Nascimento

Produção Executiva: Cazumbá Produções Artísticas