Críticas

O Boi no Telhado / Sabiá / Sra. Margareth | Cisne Negro Cia. de Dança

O bom trabalho da Cisne Negro na montagem de seus repertórios e escolha de obras de cada temporada se repete na Caixa Cultural, onde três coreografias da Cia são apresentadas a um público ávido, e que sai de lá (ainda mais) interessado em dança. Essa missão, e as obras que a integram, estão em crítica nova no Da Quarta Parede.

Na praça da Sé, a Caixa Cultural de São Paulo recebeu no início do mês de abril temporada da Cisne Negro Cia. de Dança, com um programa de três coreografias apresentadas gratuitamente ao longo de um final de semana. O público que vai à Caixa é do mais diverso, incluindo pessoas com grandes bagagens em espetáculos de dança, pessoas que estão vendo dança pela primeira vez, e pessoas, como se podia ouvir entre as conversas de antes da apresentação, que nunca pensaram na possibilidade de pagar para ver dança, ou de ir a um teatro mais distante, de mais renome, para temporadas de dança mais expressivas.

A missão aqui, não parece ser a de apresentar, em apenas uma hora, uma companhia de 39 anos de história, e, como é o caso da Cisne Negro, com um repertório e repercussão nacional e internacional: no espaço quase acidental do auditório que se instala na entrada da Caixa Cultural, o que se apresenta é a Dança. Assim, maiúscula, porque trata menos de um exemplo de trabalho, e mais dessa forma artística como um todo. Uma missão de representatividade e responsabilidade, tanto da parte da instituição que sedia a apresentação, como da parte da companhia que a ela se propõe, da qual se espera um repertório que seja acessível, que chegue a aquele público misto e com ele se entenda. Nesse quesito, o programa que a Cisne propôs para essa temporada responde à altura a missão que parece necessária.

O Boi no Telhado, obra de Tíndaro Silvano de 1998, abre a noite, com a sonoridade e a estética de um evento festivo e popular. O título — homônimo, da coreografia e da trilha sonora — vem de uma marchinha de carnaval popular dos anos 1910, e que serviu de inspiração para o francês Darius Milhaud na década seguinte. A coreografia usa das nuances melódicas da música para criar situações de solos e duos, opostas a conjuntos, que sugerem uma alteração entre bailes de carnaval — nos momentos mais íntimos — e o carnaval de rua — nos momentos em grupo.

O caráter expansivo da coreografia, que frequentemente faz um vai-e-vem na cena, resulta em saltos, em braços largados, em uma movimentação em conjunto, como se todos conhecessem aqueles passos e aquela ideia. Assim, a dança de Silvano reconstrói essa partitura brasileira com sotaque francês. É interessante pensar que quando o compositor escreve essa música, na vanguarda francesa do entre-guerras, há um desejo pela simplicidade da felicidade de algo como o nosso carnaval, que Milhaud também expressou em outros títulos, como Saudades do Brasil.

Assim como a música tem uma colagem de referências ao popular brasileiro, também a coreografia se constrói numa forma de colagem de cenas. Ora parece que estamos dentro de um salão, descansando um instante, e olhando os outros pares que dançam, ora vem a impressão de observarmos da janela o carnaval na rua. É numa dessas vistas como que da janela que a coreografia termina, com o conjunto passando pela cena até que alguém se destaque, apontando, um pouco a frente e acima, o que — só se pode supor — seria o boi no telhado, da anedota que dá origem a essa frase.

Esse conjunto agitado dá lugar a um duo lírico. Sabiá, do português Vasco Wellenkamp, criada para a companhia em 1988, parte da música de mesmo nome de Tom Jobim e Chico Buarque. Mais uma vez, a companhia dança uma música com uma história importante. A composição de 1968 foi a ganhadora do III Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, aclamada pela crítica e vaiada pelo público, que preferia Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. A discussão de Sabiá — a música — a coloca em algum lugar entre uma forma de escapismo da realidade política da ditadura brasileira, e uma premonitória Canção do Exílio, ao discutir a saudade e o retorno, no ano anterior ao auto-exílio de Buarque na Itália.

Na coreografia — assim como possivelmente na música em si — não há de fato um pano político, e essa saudade da terra se reflete em carência, e em saudade romântica. Vemos um casal que se aproxima e se afasta, numa movimentação lânguida e arrastada que se preserva em poses entre um cotidiano inesperado e um poético metafórico. A obra é curta — dura só o tempo da canção —, é aérea — em seus muitos levantamentos —, e aerada — nos espaços que se formam entre os corpos dos bailarinos, entre as partes dos corpos de cada um, e entre eles e a platéia.

Todo esse respiro pode funcionar para colocar a platéia quase que dentro dessa situação amorosa/ saudosa, porém, na gaiola apertada do palco da Caixa Cultural, Sabiá respirava com dificuldades. Os movimentos grandes, multidirecionais, se confinavam no pequeno espaço da cena, e os bailarinos não pareciam conseguir se desenvolver completamente. Fosse pelo palco, pela falta de altura, pela proximidade torturante das luzes, ou pela platéia colada, tínhamos — em uma última metáfora com o animal — uma visão de jaula e zoológico, que não abria o espaço necessário para o voo de Sabiá, que parecia mais amedrontado do que saudoso.

No entanto, a obra abre um espaço para uma outra forma de dança naquela noite. Não o festejo de O Boi No Telhado, mas um lirismo que, ainda que não plenamente alçado, comove. Essa combinação das duas coreografias não é nova no repertório da companhia, que a repetiu também na Virada Cultural de 2015, porém, seguida de um terceiro elemento que aqui foi trocado por uma obra carregada de teatralidade e representação, Sra. Margareth de Barak Marshall.

Essa adaptação de Marshall de 2013 para a Cisne tem sua origem em uma obra de 2008 do coreógrafo, chamada Monger, comissionada pelo Suzanne Dellal Centre, e que marcou o retorno do coreógrafo para a cena, depois do acidente que sofreu em 2001, o qual o afastou do posto de coreógrafo-residente da Batsheva Dance Company, onde estava a convite de Ohad Naharin.

Construída como teatro físico, Sra. Margareth tem uma história de um grupo de empregados, presos no porão da casa de sua patroa, a Sra Margareth — que não aparece em cena, e é representada apenas por sons e pela relação que os bailarinos constroem com ela. A discussão é acerca de relações abusivas, de dinâmicas de poder, e das coisas que alguém faz para sobreviver em uma situação adversa. A movimentação é estacada, com acentos fortes, que revelam a tensão das vidas das personagens, que vez ou outra vão a um microfone para atender o chamado da patroa, e o tempo todo precisam correr para serví-la.

Se em Sabiá o espaço da cena parecia diminuir as possibilidades dos bailarinos, em Sra. Margareth, o aspecto de confinamento colabora com a dramaturgia. Com a pequena platéia da Caixa Cultural cercada por panos pretos, somos colocados dentro da situação que vivem as personagens, e quando eles todos olham ao longe, acompanhando o movimento da patroa, somos convencidos da presença dela ali em cima e tão próxima, entre nós. Ainda que o grupo seja maior, o movimento de tendência mais contida se encaixa bem no espaço, e a proximidade forçada entre bailarinos e públicos funciona como uma declaração de cumplicidade. Quando, ao final da obra, os aprisionados estão prestes a se revoltar contra a patroa, o público também parece tenso e prestes a ficar em pé e assumir uma posição.

É nesse ponto que se completa a missão desse programa, com aquele público e naquele espaço. Bem pensado — para o público e o local — o programa se mostra ora bonito, ora divertido, ora emocionante, ora poético, e constantemente inteligente. Apresenta mais de uma faceta das possibilidades da dança — e da exploração dessas possibilidades no histórico da companhia — e seduz um público deliciosamente misto e inesperado, numa temporada lotada e com filas de espera.

 

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