Críticas

Revoada / Enigmas | Cisne Negro Cia. de Dança

Ainda dentro das comemorações de seus 40 anos, a Cisne Negro Cia de Dança é convidada pela Orquestra Experimental de Repertório para o palco do Theatro Municipal de São Paulo com um programa duplo, Revoada (2007), seguido da estréia de Enigmas. Revoada, do coreógrafo Gigi Caciuleanu, nascido em Bucareste e naturalizado francês foi criada na ocasião dos 30 anos da Cisne, sobre a trilha sonora do Pássaro de Fogo de Stravinsky, e com uma insistência visual que remete ao cisne que dá nome à companhia.

Revoada é uma coreografia de corpos curvados e membros esticados, de braços que se rebatem e agrupamentos que fazem pensar em pássaros numa árvore. Serve — muito — para a demonstração técnica do elenco, um dos grandes destaques da Cisne. O coreógrafo usa de associações entre os bailarinos, e de constantes movimentos de levantar e abaixar para compor a imagem de asas batendo, enquanto saltos ágeis e confiantes simulam o voo.

A manipulação que um bailarino faz do outro em duos constantes sugerem que os bailarinos não sejam, cada um deles, um pássaro, mas talvez partes de um todo, o que se ilustra bem nas passagens em que o grupo se sobrepõe aos indivíduos: interessante leitura, muito pertinente numa companhia de dança, de que — emprestando uma frase batida — uma andorinha só não faz verão.

Sempre arqueados, os braços dos bailarinos se completam, formando figuras e criaturas aladas em diversas posições. O figurino simplista, com os torsos nus, e variando sungas e saias em vermelho ou em preto, diz o coreógrafo, remetem ao processo de renovação da fênix do pássaro de fogo. Algo da pura energia e da beleza que ele desejava, então, à companhia.

Dez anos depois, a coreografia ainda guarda interesse. Não pelo discurso, mas pelas formas de associação de movimento que aparecem ao longo da obra, as construções duplas, a movimentação dos conjuntos levam para esse lugar da revoada, sem sombra de dúvidas. E, entre um tanto de previsibilidade, vemos um laboratório de criação de resultados interessantes, novos olhares para os pássaros, não a partir da majestade e da opulência de um cisne, mas da simplicidade da revoada de um bando.

Se naquele momento a Cisne se celebrava pelo conjunto, Enigmas, criada por Dany Bittencourt sobre as Variações Enigma de Edward Elgar, parece celebrar alguma forma — não sabemos muito bem qual — de individualidade. Acompanhando a estrutura da trilha sonora, composta em 14 variações para um tema improvisado pelo compositor — cada uma delas associada a pessoas de sua vida —, a coreografia se desenrola cumulativamente: no início, vemos os bailarinos que representam Elgar e sua esposa, e, ao fundo, uma massa de corpos de onde sairão para a cena cada um dos homenageados pelas variações.

O que Dany faz muito bem é a direção cênica desse sistema. Menos bem resolvida é a coreografia. É interessante a remoção do “Variações” do título, porque não há na dança um sistema de variações — abordagem que seria interessante e talvez até mais compreensível. Contrariamente, ficamos com o “Enigma” do que é que está acontecendo na cena. Se cada variação da música é feita para retratar um indivíduo ou situação, para entender, na meia hora de espetáculo, essas 14 cenas como conteúdos concretos, precisaríamos de muito mais apoio do que a leitura rápida do programa — muito conciso — vendido pela companhia.

A obra não é exatamente narrativa, mas ilustrativa das personagens retratadas pela música. Porém elas são muitas e rápidas, e, então, acompanhar seu desenvolvimento cênico é um desafio que talvez esteja claro para quem fez parte do processo de construção do todo, mas não o está para o público.

Como resultado, ficamos nesse lugar estranho entre o abstrato — porque aquilo que é apresentado não constrói sentidos claros — e o figurativo — porque sabemos da intenção da construção referencial. No outro oposto do espectro, estão os figurinos de Fábio Namatame. Trabalhando em preto, branco e cinza, entre o sólido e o translúcido, e com listras — muitas listras — o figurinista cria peças lindas e que fazem sentido, desenvolvendo um tema e suas variações, parecendo uma verdadeira coleção de moda. Poderiam ser desfiladas, acompanhadas pela trilha sonora, e já seriam um espetáculo todo à parte.

Não é surpresa o brilhantismo de seus figurinos, mas estes são especiais, porque articulam especialmente bem a proposta da obra. Bem melhor, inclusive, do que a própria coreografia, que é muito bem executada, mas é genérica, cheia de maneirismos já esperados do contemporâneo — que também aparecem em Revoada, mas sem os instantes de especificidade e interesse dessa obra anterior.

Também sobem ao palco, numa referência narrativa que não auxilia o entendimento da obra, diversos instrumentos musicais. Eles retratam a história por trás da trilha, e, sim, fazem sentido quando lemos o programa. Mas esse “quando lemos o programa” é sempre um risco. O problema não é que os instrumentos deslizem e balancem e girem como os bailarinos — ainda que seja uma construção infantil, não é problemática. O grande problema é que vez ou outra, os instrumentos no palco soam, e, na situação com a orquestra, parecem erros (grotescos) da OER, que, sob regência de Jamil Maluf, executa impecavelmente ambas as trilhas sonoras.

É uma pena a realização, talvez incompleta, dessa obra, porque seu lugar é um de destaque: o palco do municipal recebe pouquíssimas programações de dança, e deveria receber mais. Mas serve como um aviso, e uma grande demonstração de que se isso é o que a dança de São Paulo — e da Cisne Negro — consegue fazer às pressas, com qualidade e com aporte de público, quanto mais não deveríamos investir em obras ainda mais desenvolvidas e para ainda maiores sucessos.

 

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