Críticas

H.U.L.D.A. | Cisne Negro Cia de Dança

Entre o musical narrativo, o documentário histórico e o espetáculo de dança, H.U.L.D.A. é uma homenagem merecida a Hulda Bittencourt, na celebração dos 40 anos da Cisne Negro Cia de Dança, fundada e até hoje dirigida por ela.

Na comemoração de seus 40 anos de atividade, a Cisne Negro Cia. de Dança se volta para a figura de sua fundadora, Hulda Bittencourt, e cria um espetáculo que reflete seu gosto pela dança, e a persistência admirável de se manter por esse tempo todo uma companhia de dança particular. Para criar essa obra, a companhia reúne um grupo de artistas notáveis, e com frequentes relações pessoais com a companhia, dirigidos por Jorge Takla, e coreografados por Dany Bittencourt e Rui Moreira.

A experiência de Takla como diretor de musicais é facilmente sentida em H.U.L.D.A., que tem uma estranha assinatura de “roteiro” adicionada aos créditos do diretor geral. Partiu dele a proposta de homenagear Hulda, e dele vem uma sugestão narrativa de se contar a história da protagonista, através das cenas e da movimentação, mas sobretudo de um voice-over que aparece insistentemente ao longo do espetáculo, num tom de entrevista, que parece mirar no coloquial mas realmente atinge o artificial. Sim, há ali uma história que vale a pena ser contada e com muitos detalhes, mas a dificuldade em H.U.L.D.A. é esse lugar não muito resolvido entre o texto histórico e o espetáculo de dança.

Na narrativa, Hulda nos conta que ser artista era o seu sonho, retrata uma oposição de seu pai, e sua dedicação a essa realização. Em cena, encontramos uma personagem protagonista, que na temporada de estreia no Teatro Santander, foi revezada entre Ana Botafogo e Daniela Severian, parecendo representar algo como o “espírito da dança”. É essa criatura que protege uma bailarina — supomos a jovem Hulda — da figura repressora do — também supomos — pai, e é a chegada dela que faz com que os bailarinos em cena de fato dancem.

Para encaminhar a narrativa, são propostos cinco quadros, que vêm associados cada um a uma das letras que compõem o nome de Hulda, e o título da obra, H.U.L.D.A., assim criando um acrônimo para os cinco temas: Horizontes, União, Liberdade, Dança, Amor. Por vezes certeiros, por outras forçados, esses pareamentos são guiados também visualmente pelas cenas, através da cenografia de Nicolás Boni, que coloca os bailarinos movendo pelo palco grandes letras brancas para formar palavras entre as quais, sobre as quais, dentro das quais, a dança se realiza.

A proposta é um pouco insistente, e bastante “na cara”, talvez um traço de teatro musical, talvez uma questão do trabalho com o tema. E a obra funciona bem nas passagens de maior integração, como o segundo quadro, União, que retrata a participação e o investimento de Edmundo, falecido marido de Hulda, na formação da escola da Cisne — passagem que conta com ótima coreografia e execução, importante observar.

De fato, a parceria entre Dany e Rui funciona bastante bem, especialmente nesse trecho e no seguinte, Liberdade, que retrata a chegada dos atletas da USP como o momento em que surge a companhia profissional, aqui, explorando o conjunto masculino com uma movimentação inspirada no esporte. O que incomoda nesse quadro é justamente o tema Liberdade: ainda que o trecho seja interessante em si, ele se desvaloriza por essa necessidade imposta de encontrar uma palavra com L para nomear a cena — porque o esforço chega a pequenos e pouco interessantes resultados.

A obra pende para o incompleto porque não se encontra entre o musical narrativo, o documentário histórico e, aquilo que seria de se esperar que ela fosse acima de tudo, espetáculo de dança. E ai, o problema de H.U.L.D.A. é a soma das partes: desconexas como as letras misturadas pelo palco, mas sem atingir, em realização cênica, a solução dada à realização cenográfica, em que as letras se moldam para formar algo compreensível. No todo, o título soa forçado por declarar que precisa se justificar, dando para cada letra um significado que não seria de fato relevante: a história e o trabalho de Hulda são motivo suficiente para que seu nome seja o nome da obra — nenhuma outra explicação é necessária.

Mais do que na homenagem, há uma insistência nas explicações e nas justificativas, que vêm no título, no programa, na construção dos quadros, e, sobretudo, nas narrativas em voice-over. Dado momento, no início do último quadro, ouvimos Hulda falando sobre a importância do amor pela arte e pela dança: “se não tiver paixão, muda de profissão!”, e este é um dos raros momentos em que o tom da gravação de fato soa honesto. Aqui vemos a declaração de amor de uma grande artista pela dança, e nessa frase entendemos esses quarenta anos e a força que todos a sua volta retratam perceber em Hulda. Mas no restante do espetáculo, infelizmente, o tom de entrevista ensaiada, ou de leitura de texto pronto, predomina incômodo nos áudios.

Hulda não é a única a falar em H.U.L.D.A., também ouvimos a voz de Maria Pia, com quem Hulda dançou — essa inegavelmente sincera — e a voz dos bailarinos, que vêm à frente do palco para nos dizer “eu sou um cisne”, dentro da homenagem à companhia e seu nome — e ao espírito do Cisne Negro — que é feita com uma montagem musical que se apoia mais na Valsa das Flores de O Quebra Nozes do que em referências de O Lago do Cisne, talvez um reconhecimento — muito leve, se o for — do balé de natal, também composição de Tchaikovsky, e, esse sim, uma obra recorrente no repertório da Cisne.

Teria sido interessante ver essa imagem e potência do Cisne Negro, que dá nome à companhia, mais desenvolvida nessa obra comemorativa. Mas as escolhas foram em outro caminho. H.U.L.D.A. é uma obra que se lê como um livro de história infantil, que organiza texto e imagem, mas nem sempre a mão do ilustrador e as frases do escritor conversam bem entre si, ainda que ambas partilhem da mesma ideia, e operem na mesma chave descomplicada. O que é especial nessa homenagem é a reflexão — merecida — sobre um indivíduo dominante e determinante na cena da dança paulista. E, ai, faz muito sentido que as convidadas especiais não sejam versões cênicas de Hulda, mas algo ainda maior: mais que uma reflexão sobre Hulda, H.U.L.D.A. é um discurso sobre a dança, sobre a nossa dança, sobre a nossa história, e, sobretudo, sobre o amor pela dança — e, por isso, uma proposta preciosa.

 

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