O corpo como recíproco de fatalidades
Cia Carne Agonizante tenta fazer do corpo uma arma e instrumento de mudança, em reflexão sobre Marighella
escrito para o Criticatividade
O engajamento político do projeto artístico-social de colocar em cena um discurso sobre o tempo e nem sempre agradável faz parte da história da Cia Carne Agonizante, há duas décadas liderada por Sandro Borelli, que apresentou sua recente criação “Não tive tempo para ter medo”, em longa temporada no Kasulo — espaço que abriga a Carne Agonizante e a Cia. Fragmento desde 2009.
O homenageado da vez, Carlos Marighella: militante guerrilheiro brasileiro, insurgente contra o governo Vargas, e “inimigo número um” da ditadura militar, foi preso e torturado múltiplas vezes até seu assassinato numa emboscada em 1969. Fundador da ANL — Ação Libertadora Nacional, incentivava a luta armada dos trabalhadores, questionando a (falta de) ação do PCB, o fracasso da expectativa de revolução através das eleições, dentro de um sistema quebrado, liderado pela burguesia, sem lastro ideológico, e que levou à ditadura entreguista militar.
Trabalhosa biografia, não é — por sorte — o objeto de uma transposição cênica. A escolha do coreógrafo é mais inteligente, e recai sobre esse espírito guerreiro, transformado em movimento, que se inicia como um grande solilóquio de violência, que explora o corpo como um recíproco de fatalidades, mas também como arma — ainda que seja difícil entender, pela cena, e sem o apoio histórico, de que se trata, de quem se trata, de quem se servem e contra quem se erguem essas armas.
Figura emblemática do trabalho, o bailarino de punho cerrado bate no peito e ergue as mão para o céu, sequencialmente trabalhando módulos coreográficos que se repetem, calcados no princípio de insistentes quedas bruscas ao chão, e retomadas, que vão construindo a imagem e a mensagem da luta, da resistência pela insistência, e das tentativas de sucesso que marcam a história de enfrentamento de Marighella.
A segunda metade da obra é alterada pela presença de uma mulher de vermelho, que emenda na mesma estrutura cênica. O segundo corpo permite que a violência se espalhe mais pelo palco, porém em formas estranhamente apáticas: para o tanto de potência da mensagem, o tanto de violência, de decisão, e de força dos punhos que batem no peito como se fossem os tiros que mataram o homenageado, ao ser transformada em duo a cena pende para o apático. De olhar perdido, a figura que vem como uma referência a Clara Charf, companheira de vida e de luta de Marighella, se dissolve num tom genérico de “espírito da liberdade”, mas inteiramente tomado por uma sensação de fracasso, como se nada que fosse feito pudesse ter algum resultado real.
Ai, mistura-se um tanto a perspectiva da homenagem histórica com a leitura do tempo presente, que também é um ponto chave nos trabalhos de Borelli. Juntamos a isso a característica repetitiva e cíclica da obra e parecemos estar nos interrogando acerca da ineficiência e da falência de tantos movimentos brasileiros contra o status-quo que Marighella atacava há mais de meio século, e que parecem, nesse retrato, se abater tristemente sobre nós, tão fortes quanto antes, ainda que talvez disfarçados ou dissolvidos em múltiplas estruturas.
Esse tipo de leitura é, ao mesmo tempo, o trunfo e a dificuldade com a obra, porque a sua atualidade é sensível, mas sua percepção de retrato histórico fraqueja. Não que isso se constitua em um problema, mas fica o questionamento de como essa forma lida de fato com um tema específico pontualmente apresentado sobre um sujeito, e o quanto dela se atém ao tema mais abrangente no qual esse sujeito se insere — a necessidade de luta, da qual se poderia falar com diversos outros nomes.
A noção da transposição entre os tempos se perfaz com a repetição das estruturas de movimento — tudo é feito mais de uma vez, como se a história se repetisse, numa simplicidade entre o linear e o cíclico, que ocupam diversos aspectos da obra. O trabalho com a violência é presente mesmo nos menores esquemas, na organização de como um toque mais forte força uma reação. Porém, a ação-e-reação é mecânica, e age intensamente sobre os corpos em cena, ainda que não sobre personagens ou indivíduos.
Essa forma de forçar a reação do corpo carrega em si uma dificuldade interpretativa, porque é uma construção que parte de um princípio improvisacional, mas empregado e registrado como coreografia, cuja execução, para transmitir esse teor, demanda grande trabalho e um tanto de abandono. Esse é um dos casos em que o conhecimento milimétrico da coreografia nem sempre contribui com o resultado esperado. Se tratamos de um sistema de ação-e-reação, esperamos um certo fluxo dessa dinâmica, que marque a intensidade de uma ação e os modos como ela provoca sua reação. Porém, a familiaridade com a coreografia arrisca a percepção de certos desnivelamentos: como se a força exercida e a reação que ela causa não fossem pareadas.
Um tanto disso é fundamental para a sensação de enfrentamento, cara ao tema e à obra, e que se constrói sobretudo em tônicas corporais (nas diferenças entre os bailarinos do elenco, e das escolhas de interpretação já pontuadas), assim como na dinâmica do lidar um com o outro. Em oposição ao caráter responsivo, o aspecto contínuo que se constrói pela estrutura coreográfica cria verdadeiros desafios de realização, cujo fluxo, fluidez sequencial, é bastante intermitente.
Para além dos desafios de realização, estão os desafios de compreensão, mas não poderia ser diferente: o trabalho da Carne Agonizante e de Borelli focam nesse aspecto de fuga do entretenimento leve, demandam pensamento, questionamento ativo. Propositalmente, não entregarão todos os pontos: cabe ao público continuar, ir além, e aceitar (ou não) ser incitado — para o tema, e para o ataque, que, em cena, a mão aberta batendo no corpo com força parece nos sugerir. Só assim, o corpo como um recíproco de fatalidades poderia se desdobrar em arma, em ataque, e em instrumento de mudança.