Não te Abandono Mais, Morro Contigo | Cia Carne Agonizante
Dois bailarinos adentram a cena de um quarto na penumbra. Parece algo comum, corriqueiro, mas a trilha sonora impede qualquer identificação de cotidiano: uma espécie de grito abafado, estrangulamento sufocado, gemido, falta de ar, ocupa os ouvidos e domina o espaço, contagiar o público.
Na cama, eles se despem. Bebem e se ignoram. Há algo de mecânico em toda a interação que se segue, trabalhada por uma coreografia de precisão, de força, mas que não dá margem de interpretação e pessoalidade, mantendo assim um ambiente árido e severo. Em muitas posições, os corpos se encaixam, mas não há aconchego entre eles.
Não te Abandono Mais, Morro Contigo, de Sandro Borelli (2015) com a Cia Carne Agonizante integrou a Mostra Diversa de Dança LGBT na programação cultural da semana do orgulho LGBT de São Paulo. E a representação da relação em cena não poderia ser mais crua, no melhor sentido da palavra. Contra todos os clichês das representações homossexuais (nada carinhosamente) apelidadas de “comercial de margarina”, em que tudo é claro, feliz e despreocupado, aqui, tudo é tensão, num tom que beira o desespero.
Os corpos são meticulosamente talhados. O jogo de força, de sobreposições, e de espelhamento, demanda esforço, mas a expressão limpa nos rostos tira toda a interpretação de desejo. Eles se tocam da mesma forma como seguram as taças, com a delicadeza de quem se evita. E rolam, um sobre o outro, não se sustentando e apoiando, mas esmagando identidade e desejo.
A cena é sexual, mas não é erótica. O sexo é sem liberação, e o toque sem prazer. Eles fazem tudo que precisa ser feito, sem nada esperar, e sem nada ganhar com isso. São dois corpos de desejo, mas numa cena inóspita, em que o orgasmo é transformado em extrema-unção, e continuamente esperamos um fim trágico, que não chega.
Coreografia de insistência, de peso e de vazio, nos enclausura na melancolia e somos — o público também — castigados pela volta dos gemidos abafados e estrangulados. Castigo complexo. Sem crueldade, mas de uma crueza pungente, de onde não se escapa, e só um beijo, ao final da cena, traz alguma sugestão de paz — não o suficiente para fazer feliz, para mudar a situação, mas o bastante para alimentar esse ciclo, que se repete — temos certeza.
Não há saída. A cena se encerra de volta ao lugar onde começou. Na cama, os dois deitados, se encostando, mas sem se aconchegar. A única mudança é a cama desfeita, metáfora interessante do lado de dentro das personagens, arrancadas do conforto, desorganizadas, mas ainda, de alguma forma, ali. Talvez não conheçam outras opções, talvez não tenham forças, talvez não saibam fazer outra coisa. Permanecerão ali: não se abandonam mais, e não há nenhum contentamento nessa constatação.