Críticas

Linhas e entrelinhas de um encontro notável

Recebido em meio à comemoração da Gala do Balé da Cidade, o BTMRJ nos ajuda a olhar para formas diversas de fazer dança, e para as necessidades de incentivo e continuidade que faltam a elas.

É incômodo, e até perturbador, como vemos pouco o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro aqui por São Paulo. Em uma ocasião de grande comemoração, o Balé da Cidade de São Paulo nos apresenta uma Gala, entitulada “Panorama e Memória”, na qual recebe a companhia do Rio, além da São Paulo Companhia de Dança, no palco do Theatro Municipal.

São três companhias em um momento histórico, juntas pela primeira vez. O BTMRJ foi a primeira companhia oficial brasileira, o BCSP está em meio às suas comemorações de 50 anos, enquanto a SPCD marca sua primeira década. O evento chega quase como que uma surpresa: não constava na divulgação dos planos da temporada de 2018 da companhia paulistana. Lotado, o Municipal recebeu públicos fieis dos grupos e outros tantos novos, fascinados pela proporção de tamanho encontro, que foi precedido por uma mesa-redonda, em que os quatro diretores das três companhias puderam apresentar um pouco dessa história.

Disposta como há muito não se via por aqui, a plateia foi calorosa com todas as obras, que incluíram o segundo ato de “O Lago dos Cisnes”, da versão que a SPCD vai estrear completa em novembro desse ano, e “Adastra”, peça-chave do repertório recente do BCSP, constantemente dançada desde sua estreia em 2015. Do Rio, vieram três coreografias, mais curtas, que causaram um certo questionamento no momento da divulgação do programa, mas que se justificam sem dúvidas no palco.

Antes que o palco se enchesse de dança, no entanto, o momento solenidade — que tem se tornado padrão nas aberturas de temporadas da direção de Ismael Ivo — veio discutir outros vieses para a arte e a dança. Denunciando a insegurança da vida atual, constantemente em clima de alerta, Ivo nos falou sobre a necessidade de união. Refletindo sobre o momento político de antecipação das eleições — última semana antes dos registros das candidaturas, inclusive — o diretor ressaltou a responsabilidade social e coletiva que temos sobre os fatos, com o apelo de que é preciso dizer “basta” e escolher algo melhor para o país, ressaltando o papel da arte como documento de seu tempo e espelho da sociedade em que vivemos.

Frente a essa Gala, então, cabe questionar um pouco o que esse espelho — artisticamente — nos mostra. Em primeiro lugar, talento. É impossível sair de um encontro dessa magnitude sem reconhecer e insistir na qualidade da arte e da dança que são feitas no Brasil. Em segundo lugar, variedade. A nossa produção é diversa, e de excelência em várias áreas. Em terceiro lugar, interesse. Mais uma vez, como tem se tornado hábito, o Municipal estava lotado para se ver dança, o que questiona muitas opiniões sobre desinteresse e indisponibilidade do nosso público. Se não se pode dizer que o público daqui esteja pronto ou interessado em acorrer a toda forma de dança, é certo que há produções que interessam — e muito. E vale a pena olhar para essas.

Por último, mas não menos importante, esse espelho nos mostra dedicação e insistência. As três companhias, de formas específicas, claro, sofrem com uma série de cortes e de medidas de austeridade que têm afetado sua forma de produzir arte, e têm se articulado e organizado em diversos níveis e parcerias para se manterem relevantes. Esse encontro é uma dessas formas. Inesperada surpresa, e muito positiva. Lida um tanto com o “aquilo que conseguimos fazer”, que nunca é o ideal, nunca é o desejo, e, mesmo assim, é algo admirável.

Na primeira de suas coreografias no programa, o BTMRJ apresenta o Pas de Trois do seu “Lago dos Cisnes” de Yelena Pankova, num contraponto à versão de Mario Galizzi para a SPCD, que abriu a noite. Aqui, uma oportunidade de ver como a casa, de tradição clássica, influencia seu elenco, cuja técnica desponta para enfrentar a especificidade da coreografia em pés bem trabalhados, braços de leveza ímpar e mãos expressivas. Especialmente boa é a execução das variações, nas quais o elenco tem a oportunidade de mostrar alguns dos méritos da organização mais tradicional de companhias de dança, com esse tipo de espaço de expressão e destaque dos solistas.

Não hã na coreografia de Pankova uma marca de estilo que a diferencie claramente ou a torne uma versão de assinatura reconhecível, ainda que um paralelo possa ser feito com as formações em conjunto de Galizzi para a SPCD, que carregam toques — bem vindos — de modernidade. Esse paralelo dos conjuntos, no entanto, não seria de fato justo com o BTMRJ, que se apresenta aqui com poucos elementos, mas serve para mostrar um tanto da proposta e das formas de lidar com o balé que encontramos — distintamente — nas duas companhias: uma valorizando uma tradição e suas formas, e outra reconstruindo essa tradição a partir de referências que se acumulam em sua história e para as quais os corpos de seu elenco têm criado, há dez anos, respostas práticas de movimento.

O tom do romantismo que forma o balé clássico é a tônica da segunda coreografia, “Melodia de Gluck” de Assaf Messerer, que, com um xale esvoaçante coreografado entre os braços permanentemente abertos da bailarina, nos mostra um duo de ótimos promenades e sustentamentos seguros e equilibrados. Ele é ultra romântico em todos os sentidos. Espectral, a bailarina soa sobre-humana, meio memória e meio espírito, faz pensar na “Noite na Taverna” de Alvares de Azevedo, nos sugere as Willis de “Giselle”, mas sem o peso da crueldade e da vingança, resistindo apenas como uma lembrança diáfana, a um minuto de desaparecer no ar.

O outro lado da moeda nos é apresentado em “Gopak”, solo de Ygor Mosseyev, parte do balé “Taras Bulba”. Hipertécnico, de personagem e personalidade, faz o ponto alto da noite e é, correspondentemente, ovacionado. Incrivelmente breve, Cícero Gomes passa pela cena para nos mostrar a dinâmica de peso e elevaçao dessa dança de origem tradicional ucraniana. Despojada, mas complexa e detalhada, seu grande trunfo é nos apresentar um potencial técnico com gosto de quero-mais.

Serve para nos mostrar o potencial brasileiro de formar estrelas. Para além do questionamento de nossa tradição, e dirigindo-se diretamente à questão premente dos nossos bailarinos clássicos transformados em produtos de exportação para companhias estrangeiras, vem nos lembrar que, em primeiro lugar, eles são bons mesmo; em segundo lugar, a escolha por deixar o Brasil é recorrentemente por falta de oportunidade e de mercado de trabalho; e, em terceiro lugar, com a efusiva reação do público — continuamente interessado e disposto ao clássico — que já passou da hora de atendermos essa demanda, também em São Paulo.

À parte as muitas discussões sobre a tradição da cidade, um encontro como esse nos insiste na diversidade de obras que podem interessar ao público daqui. Algo que serve como indicativo real da necessidade de direcionamento e ampliação das políticas públicas para a dança — e que vale a pena ser lembrado, especialmente num momento de austeridade, como esse, e especialmente num momento de definições de novos projetos de governo, como aquele em que estamos. Tanto nas linhas como nas entrelinhas, essa Gala nos fala muito bem sobre a nossa dança de agora, e nos enche de planos para a nossa dança ainda por vir.