Brasílica Extemporâneo | Cia. Brasílica
Um jogo de cartas determina a organização do espetáculo novo da Cia Brasílica, investigando as vivências individuais de seus seis bailarinos, para criar um todo que se compartilha com o público em muitos níveis, para além do nosso tempo-e-espaço comuns. Brasílica Extemporâneo, criticado para a Plataforma Digital Dança Para Todos.
Cia Brasílica retrata o aleatório, o pessoal, o místico, e o compartilhável em um ritual cênico – escrito para a Plataforma Digital Dança Para Todos
Dando continuidade a 10 anos de trabalho dedicados à investigação das manifestações populares brasileiras e de sua transformação em trabalhos cênicos, a Cia Brasílica estreia Brasílica Extemporâneo, obra que coloca em jogo e em cena as relações das vivências distintas que formam o elenco do grupo, numa apresentação que tem como fio condutor a característica incontrolável da vida, que vai ao palco através de procedimentos de aleatoriedade na organização das diversas cenas da obra.
Somos recebidos por uma certa forma de leitura de tarô: no palco, estão dispostas nove cartas criadas pela companhia, a partir de propostas e reflexões individuais dos bailarinos. Três dessas cartas são apresentadas como fixas, representando o início, o meio, e o fim — tanto do espetáculo quanto de um ciclo na vida. As demais seis cartas, cada uma diretamente associada a um dos bailarinos da companhia, estão dispostas viradas para baixo, e a Cia pede a membros da plateia que venham escolhê-las ao acaso, assim determinando a ordem dos eventos a que assistiremos: três entre o início e o meio, e três entre o meio e o fim.
Se a matemática não me falha, o resultado disso são 720 possibilidades distintas de arranjo para assistirmos em Brasílica Extemporâneo. Uma proposta de dramaturgia que é construída em tempo real, na frente do público, sem controle da direção da obra quanto a seu encadeamento, e que determina diversos aspectos da nossa recepção e entendimento do espetáculo.
Os temas de cada uma das cartas, e portanto de cada uma das cenas, são relacionáveis: é discutida a Criança, a Mãe Terra, o Mestre, a Loucura, o Caranguejo, e a Morte. No início do espetáculo, somos apresentados não só à proposta, mas também aos significados de cada carta, que, depois de selecionadas e ordenadas segundo a escolha do público, permanecem viradas para cima na beirada do palco, de maneira a podermos acompanhar a progressão da obra dentro de sua estrutura.
São diversos os elementos que despertam a curiosidade e o interesse, não só pela contagiante trilha sonora, e pela movimentação que nos remete diretamente a manifestações populares, mas também pela constante reflexão que nos prende à obra: como ela seria, se a escolha das cartas fosse outra?
Nesse aspecto, a companhia chama a atenção para o projeto desse espetáculo, de discutir o quando de comum existe na experiência individual. Sabemos que cada movimento vem de uma reflexão pessoal dos bailarinos, mas nos identificamos constantemente com as referências que que são construídas. A Criança traz uma movimentação leve e despreocupada, que se contrasta, por exemplo, com o tema da mudança brusca do Caranguejo, com a discussão das escolhas pessoais da Morte, com o aprendizado e a inspiração que vem com o Mestre, e assim por diante.
Eliminar o estabelecimento de uma linearidade lógica dos eventos é uma forma da Brasílica ressaltar o quanto de descontrole está presente em nossas vidas, e quanto elementos existem sobre os quais não temos poder. E o resultado cênico múltiplo valoriza a característica da impermanência das artes vivas. O uso de elementos de acaso faz parte da história contemporânea da dança, e se identifica em diversas propostas em que criadores tentaram diminuir o controle que tinham sobre as obras. Aqui, nos aprofundamos nessa proposta, porque o controle do espetáculo pelo público chama a atenção para a importância do fenômeno da apresentação para a arte da dança.
Há dois sentidos possíveis para o conceito de “extemporâneo”. Em um dos sentidos, “extemporâneo” é aquilo que pertence a um outro tempo, não ao agora. É uma forma de oposição a “contemporâneo” — palavra que predomina na dança e em suas discussões. No outro sentido, “extemporâneo” é aquilo que se manifesta fora do tempo apropriado ou desejável. Nessa segunda acepção, vemos uma ligação direta com o trabalho da Cia e do Método Brasílica, criado por André Madureira, o fundador do Balé Popular do Recife, e que continua sendo desenvolvido por seu filho, Deca Madureira, diretor da Cia Brasílica. Esse trabalho parte de uma extemporaneidade, na tentativa de levar para os palcos a arte popular, assim criando algo de novo, que não é nem exatamente a dança acadêmica, nem exatamente a dança das manifestações e das festas, mas, ao mesmo tempo, é um pouco dos dois.
Extemporaneamente, sobem ao palco elementos da nossa cultura brasileira que vemos, que percebemos, e que sentimos. E, em Brasílica Extemporâneo esses elementos são valorizados pelo formato de composição das cenas, com as cartas como propostas a serem sorteadas ao acaso, e pelo público. A obra, assim como a vida, se mostra como uma experiência única, intensamente variada de um indivíduo ao próximo, e, ao mesmo tempo, extremamente partilhável e partilhada, transpassando o nível do pessoal e alcançando o místico, retratado no caráter ritualístico e cerimonial colocado em cena. O rito, que no espetáculo até se inicia com uma oração, nos transporta para além do aqui-e-agora do teatro, e nos leva para um outro espaço, um outro tempo, extemporâneo, onde podemos refletir, através da arte, acerca da vida.