Maré de angústia e beleza
Crítica publicada no jornal O Povo, dentro da cobertura da Bienal Internacional de Dança do Ceará 2021
O “Inventário de Belezas”, que Luiz Fernando Bongiovanni criou para a Paracuru Cia de Dança, é uma obra de extrema delicadeza. Reflexiva, ela discute características desse nosso momento, por um ângulo um tanto sensível: ela não fala de restrições e do novo normal, mas dos nossos sentimentos e inseguranças com agora, e das perspectivas e esperanças pro futuro. “Inventário”, como as ondas do mar que sonoramente abrem a trilha sonora, funciona numa maré de fluxo e vazante, entre a melancolia do momento e a esperança verdadeira do seu contorno.
No palco, o corpo rola como se fosse sobre a areia da praia. Inquieto, ele não acha repouso, mas continua. E continuar já é um tanto, porque olhar pra frente tem sido complicado. Ouvimos dessa complicação no depoimento de uma mãe sobre o medo de um futuro difícil, e a questão de como preparar um filho para aquilo que não sabemos o que é e como será. Tem peso e é concreto. Assusta, e compartilhamos esse temor. Mas “Inventário” tem uma mão boa nas dosagens. Traz flores para os vivos, os que estão, os que ainda virão. Um instante de silêncio em que a mente se prende à expectativa de que tudo seja melhor.
A obra vai do medo do futuro ao prazer da dança e do agora, em ótimos momentos de coreografia. Os desenhos do conjunto no palco, especialmente, são bastante acertados. Todas as linhas são lindas, causam efeitos de continuidade bem medidos pelo coreógrafo e bem alinhavados pelo elenco. Porém, mais do que a dança, importa a verdade que essa obra transpira: o que ela coloca em cena é uma esperança que é real, mas que às vezes escorrega em angústia, e pode precisar ser arrastada pra fora do palco.
É esse equilíbrio que é tão bem temperado em “Inventário”: a obra consegue tratar de um assunto sério, e respeitar o espaço para sua consideração, sem descer uma ladeira de mágoas. Existe uma alternância entre a angústia e a esperança, que é um reflexo concreto de nosso momento atual, e, por isso, extremamente identificável. Com toda sua densidade, a obra ainda é leve como as folhas de papel em cena, sempre a um sopro de escapar dos dedos, e pulsa como as contrações e espasmos da coreografia, de corpos ansiosos, que desejam algo e tentam se agarrar a essa esperança às vezes sem forma.
O obra segue a linha dos trabalhos de Bongiovanni, bastante atento aos indivíduos que coloca em cena e a suas histórias. E o elenco da Paracuru, além de cuidadoso no aspecto técnico, também consegue entregar a vulnerabilidade pra dividir com o público seus anseios e esperanças, num mapa de cicatrizes que, como o cenário da obra, provoca e intriga, mas também encanta. Saber o que machuca não é o fim, é o começo de ficar bem.
O resultado é sincero, doce e delicado. Reconhece os medos, mas insiste no que faz bem, e por isso dá o alívio de nos sentirmos menos sozinhos. Contra um futuro incerto, toda a beleza do mundo. Toda a beleza daquilo que te faz bem, que te faz feliz. E que às vezes cabe dentro de um abraço, como o que encerra esse inventário.
Direção Flávio Sampaio
Criação Luiz Fernando Bongiovanni
Luz Luiz Fernando Bongiovanni e Eduardo Teixeira
Figurinos Marina Carleial
Assistente de Figurinos Joab Tafarel
Elenco Lucas Melo, Luísa Castro, Jamerson Renan, Priscila Castro, Rochele Conde. Romário Santiago e Thales Santos
Foto Allan Diniz