Críticas

Vai dar certo – pra quem?

Crítica publicada no jornal O Povo, dentro da cobertura da Bienal Internacional de Dança do Ceará 2021

A Bienal de Dança do Ceará é uma grande área de contato. Todas suas ações misturam gente, misturam danças, misturam origens. Mas tem algo de especial que acontece dentro dos Percursos de Criação, plataforma de residências artísticas curtas, que colocam intérpretes locais para criar. Um dos frutos dos Percursos desse ano, ‘Área’, dirigido por Luís Alexandre e Rosa Primo, foi o ponto alto da programação.

‘Área’ reuniu bailarinos vindos dos Cucas (Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte) pra falar sobre o meio ambiente. O resultado, feito com pouco tempo e pouco recurso, testemunha a imensa potência desses jovens artistas.

Na reflexão que eles propõem, muito rápido a questão ambiental engole questões sócio-econômicas. Enquanto debatemos de quem é a preocupação com a crise climática, e a guerra iminente, eles nos lembram que, pra alguns, a guerra já começou há muito tempo, e a luta nunca diminuiu.

O privilégio sócio-político-econômico-climático-ambiental é uma avalanche, destruidora, que esmaga uns pra garantir a força de outros. Os derrubados são sempre os mesmos, e caem como as cenas de queda e desabamento da obra. Por Fortaleza toda, muros e propagandas nos dizem: Vai Dar Certo. ‘Área’ repete a pergunta que eu vi pixada pelo centro: vai dar certo — pra quem?

Rostos cobertos por sacolas plásticas, sufocados e com a movimentação que pulsa com o  peito batendo forte, arfando, sem conseguir respirar, eles nos perguntam o que estamos fazendo com o mundo, o que vai sobrar dele, e quem fica com o que sobrar. A ameaça é real, mas eles continuam. O corpo inventa a sua inteligência. Quando a existência depende tão intensamente de você mesmo, não há lugar pra apatia. O corpo precisa ser esperto, e descobrir como inventar a sua continuidade. Eles são. E a continuidade inventa alegria onde só existiria destruição.

O trabalho é emotivo, é inteligente, é perspicaz, e é excelente. Fala do clima, fala do mundo, fala para o mundo, e fala também de um pedaço do mundo pra onde nem sempre se olha. A música de Mateus Fazeno Rock que termina a trilha sonora avisa: “quem se cria na selva aprende a caçar / é muito fácil falar não estando no seu lugar / então vai lá pra ver”. Aqui, eles vieram pra nos mostrar. E muito mais gente precisa ver isso.

‘Área’ expõe um ponto de vista que só tem essa potência toda porque vem de absoluta sinceridade daquilo que esses bailarinos abrem para nós. E por isso bate forte. Atinge e comove o público. Se a plateia atrapalha a experiência, é porquê ela insiste em se manifestar e acaba roubando a atenção. Mas a gente entende que isso acontece porque o público se vê em cena, porque (finalmente) se sente parte da dança.

Porém, independente das manifestações de amizade, esse elenco merece ser visto e aplaudido simplesmente porque é incrível. Clarice, Deborah, Ewerton, Fran, Gisselly, Jônatas, Jonathan, Kew, Luan, Lucas, Manu, e Rickson — tomaram a bienal em assalto, e foi difícil continuar a discutir a programação depois disso.

Eles têm uma coisa que fica aparente em muito da dança daqui: um jeito único de fazer arte política, que se nega a ser menos arte, e, por isso, é sempre desconcertante e encantadora. Move a plateia e o mundo. São outros pontos de vista, outras experiências, outras áreas a conhecer. Algumas a serem encontradas, outras a serem invadidas, outras a serem protegidas. A todo custo.

 

Área

Percursos de Criação – XIII Bienal Internacional de Dança do Ceará 2021

Direção Luís Alexandre e Rosa Primo

Elenco Ewerson Vitoriano, Rickson Barros, Luan Nunes, Lucas Vaz, Jônatas Joca, Gisselly Dias, Fran Córnio, Jonathan Lacration, Clarisse Souza, Kew Ajani, Deborah Helena e Manu Gomez