Críticas

A primavera como palco

Consagrado com mel e rosas, o palco do municipal está pronto para mais 50 anos de Bale da Cidade.

Foi uma surpresa ver, no anúncio da temporada no começo do ano, a previsão de uma nova “Sagração da Primavera” para a comemoração dos 50 anos do Balé da Cidade de São Paulo. A obra é envolta em risco. Já fez parte do repertório da companhia, é feita sobre uma trilha sonora incrivelmente complexa, e é uma das mais emblemáticas coreografias da historia da dança, ali ao lado de “Giselle” e “O Lago dos Cisnes”. A mística em torno da Sagração ja dura mais de um século.

Tamanho risco se justifica em princípio pelo tamanho do evento que ele representa. 50 anos de ação contínua e destaque no cenário da nossa dança não são uma missão fácil, e precisam ser celebrados adequadamente. Na prática, a única coisa que pode sustentar esse risco é a sua realização. Felizmente, o resultado é de extrema qualidade.

Numa produção cinematográfica e visual, essa “Sagração” ilustra fielmente o projeto de impacto cenográfico que temos percebido na gestão de Ismael Ivo, que assina também essa coreografia. Aqui, finalmente realizada com seus devidos pesos, não cedendo demais ao puro espetáculo de arroubos cênicos, e sendo carregada de dança consequente, bem elaborada e bem realizada, num conjunto que não falha em cativar o público, mas que também servirá decididamente como herança estética.

Modificando um tanto a estrutura da obra, foi a ela adicionado um prólogo, de Andreas Bick, com gravações de atividades vulcânicas. Durante ele, os bailarinos, como filhos da terra, como filhos do barro, preparam o espaço para a consagração, que será feita com mel sobre seus corpos. Com um casal destacado na cena, é quase inevitável pensarmos em Adão e Eva, antes da expulsão do paraíso, e aqui ganha uma nova dimensão o sagrado da obra.

Investindo no caráter sexual que não lhe é alheio, e numa divisão constante entre masculino e feminino, são trabalhadas as dinâmicas do espaço e do chão, mas de uma maneira completamente distinta daquela que conhecemos da “Sagração” original de Nijinsky. Aqui envolta numa chuva de pétalas de rosas que dura toda a extensão da obra — exceto o prólogo — o movimento não refaz o percussionismo que Nijinsky propunha como forma de despertar as sementes soterradas pela neve em sua “Sagração”.

A sagração de Ivo é mais tropical, lida um tanto com a incerteza da passagem das estações, mas, principalmente, com o que elas representam — a continuidade, a esperança, o porvir. A terra não precisa ser pisoteada, ela precisa ser aerada, fecundada, e isso é feito com os movimentos que levantam as pétalas do chão, aumentando a sensibilidade dessa chuva contínua, e criando um novo direcionamento para ela, que também escorre para cima.

Não se trata, no entanto, de uma sagração aguada. Ela tem força, ela tem risco, que também se mostra na estrutura cênica, trabalhada em uma plataforma que atravessa toda a extensão do palco e que dinamiza as possibilidades de chegadas e de saídas do elenco, de pulos e escapadas, frequentemente brutalmente rápidos, como se os bailarinos se atirassem para dentro de um vulcão, ou de um penhasco.

Essa mistura consegue dosar o trabalhoso espectro entre o tradicional e o inovador. Nenhum dos traços da movimentação da “Sagração” original, mas também nenhuma desculpa ou condescendência: a primavera demanda sacrifício e ele é doloroso, sonoro, sensível, tenso, pesado, real e coreográfico.

Há uma figura de mártir, como na versão de 1913, mas ela é ampliada para outros membros do grupo, com a passagem da veste sacrificial que parece nos dizer que qualquer um de nós poderia ser o alvo desse sacrifício, e que talvez já o tenhamos sido. Em cena, o sacrifício é marcado em sangue, mas não é executado pelas mãos dos outros, e sim pela chuva — transformada em tempestade — das pétalas.

Ao longo da obra, algumas passagens de inovação ajudam a marcar essa versão com uma assinatura própria. Uma cena com espelhos adiciona um tom mais atual, refletindo sobre o que fazemos, quem somos, para onde encaminhamos nosso futuro. Outra cena, com os bailarinos com maçãs na boca sendo mordidas e trocadas como se fossem beijos, numa alusão ao compartilhamento do fruto proibido, talvez seja a cena mais sensual desse ano — e sem precisar recorrer a absolutamente nenhum artifício.

No conjunto arriscada e decidida, a “Sagração” de Ivo é de uma poesia fina, sensível, delicada e comovente, fortalecida e favorecida pela chuva de pétalas que cai constante, mas sempre mais forte e intensa do que ela: o primeiro plano aqui é o movimento, e é isso que faz da obra a melhor dos últimos anos da companhia, porque ela consegue aliar a qualidade em dança com o espetáculo de alto nível que já vínhamos encontrando. Finalmente, vemos plenamente realizado o projeto artístico dessa direção. Denso, consequente, impactante e de qualidade estética e técnica, artística e coreográfica. Que esse sacrifício de arte nos leve a novas primaveras para a dança de São Paulo.