Críticas

Cantares / abrupto. / Cacti | Balé da Cidade de São Paulo

Três modernidades distintas em cena no programa de estreia da temporada 2016 do Balé da Cidade de São Paulo, anunciam a manutenção de um projeto artístico que incentiva a inovação ao mesmo tempo em que valoriza a sua própria história, em uma crítica tripla no Da Quarta Parede.

A estreia da temporada 2016 do Balé da Cidade de São Paulo, ao final do mês de março, no palco do Theatro Municipal de São Paulo, marca um conjunto de eventos relevantes. Pela primeira vez ao longo de seus 48 anos de história, a companhia foi incluída na programação de assinaturas do TMSP, espaço que é a casa de apresentações do grupo — um dos corpos estáveis do Theatro —, mas de onde o Balé da Cidade esteve ausente no ano de 2015, por dificuldades de programação.

Agora de volta a sua casa, e na sequência de uma longa turnê de apresentações por três países da Europa, o programa que abriu essa temporada foi composto por três coreografias do repertório recente da companhia, que reserva as estréias desse ano para os próximos programas, também no municipal. Curiosamente, as duas primeiras obras do programa de março/abril também foram apresentadas no primeiro programa da companhia no Municipal em 2014: Cantares, de Oscar Araiz, e abrupto. de Alex Soares — que se juntaram a Cacti de Alexander Ekman (essa, estreada no meio de 2014), para compor esse primeiro programa de 2016.

Ainda que se possa apontar esse programa como recente (todas as coreografias integram o repertório desde 2013, ano em que Iracity Cardoso assumiu a direção do grupo), é preciso um adendo histórico: Cantares, de Oscar Araiz, é uma obra de entrou para o repertório do BCSP pela primeira vez em 1984, sendo ela mesma um trecho de uma obra maior do coreógrafo, criada em 1982 para o Ballet du Grand Théâtre de Genève. Recuperada para o repertório ativo do BCSP outras duas vezes, em 1990 e, finalmente, em 2013 — dentro do quadro das comemorações de 45 anos do Balé da Cidade — Cantarespartilha essa história inusitada tanto com essa companhia, quanto com a sua diretora atual, pois Iracity era bailarina e assistente de direção do Ballet du Grand Théâtre de Genève no momento da criação da obra Ibérica, da qual Cantares é um trecho.

Esse aspecto histórico chama a atenção para uma característica perceptível no programa atual: uma apresentação de três modernidades distintas — conceito valioso pra se pensar o BCSP, fundado em 1968 como uma companhia clássica (e então chamado de Corpo de Baile Municipal), e repensado como instituição moderna desde 1974, momento em que passa a criar e remontar obras da modernidade e contemporaneidade da dança, abrindo um novo espaço de trabalho para os bailarinos, mas também um novo espaço de apreciação para o público paulistano, bem como um novo campo para os coreógrafos (daqui e de outros locais). Essa variedade criou um repertório único e misto de referências e tradições, sobre o qual impera ainda essa noção da modernidade da dança (em um entendimento de oposição à tradição clássica), e que, nesse momento, nos apresenta três instâncias.

Desenvolvida sobre tema do feminino hispânico, Cantares é uma obra para um conjunto de bailarinas, na qual vemos algo como uma irmandade, um empoderamento das mulheres unidas em grupo, ainda que tenhamos a imagem de uma solista, como alguém que guia esse conjunto. Há algo de circular — tanto nos formatos das construções dos agrupamentos, como na referência possível às danças circulares, sociais, de integração de comunidades e rituais — que leva a obra, e uma forma de tensão corporal que parece fugir dessa conformidade do círculo. Essa tensão se representa tanto pela figura dessa possível líder — que tangencialmente escapa ao círculo e força novas formações — quanto pela utilização dos corpos das bailarinas, com extremidades flexionadas e tensão no centro do corpo, gerando movimentos de propulsão e força, numa coreografia explosiva, que empurra do centro para fora.

É nessa visão da articulação corporal que se sustenta o entendimento da situação dessas mulheres fortes como uma situação de reflexão interna e consideração intra-pessoal. As personagens se descobrem fortes por se encontrarem individualmente dentro do grupo. Essa perspectiva alivia um pouco o descompasso da companhia com a música executada ao vivo pela Orquestra Sinfônica Municipal — talvez pela falta de hábito com essa música assim realizada, talvez pela individualidade dessas mulheres nessa situação, que cria conjuntos um pouco destoados, e sequências nem tão juntas para o uníssono, nem tão contínuas para o cânon.

Nessa forma, um gestual representativo, quase mimético, cria cenas que parecem teatrais, ainda que não apresentem um enredo perceptível, e desenvolvam mais sobre esse aspecto do feminino e da força, que remete a um entendimento da modernidade associado às pioneiras da dança moderna — bailarinas e coreógrafas que desenvolveram técnicas e formas de expressão pessoal a partir de sua dança, para tratarem de si.

Se ai se valoriza esse aspecto da individualidade com relação ao grupo que cria união, na obra seguinte, abrupto. de Alex Soares, há algo de imprevisível na relação indivíduo-grupo. Escolhendo trabalhar com o tema da catarse, com aquilo que acontece depois de um instante de reviravolta, violenta e abrupta, a coreografia desenvolve em sequências de duos, solos e conjuntos, que se interrompem bruscamente e se transformam, se reconstroem, se reelaboram.

A discussão, apresentada mesmo no programa da temporada, acerca do que acontece depois desse momento de impulso irracional, se foca, na verdade, não no depois propriamente dito, mas no momento em que de fato ocorre essa liberação catártica. O público completa a lógica do espetáculo, mentalmente, traçando suas possibilidades, cogitando o que viria a seguir. O coreógrafo cria uma grande associação, mental — reflexiva — mas também emocional, que, entre a movimentação forte e muito bem executada pelo grupo, regida por gritos que marcam afastamentos e expulsões de um bailarino por outro, constrói pequenas epifanias. Mas são epifanias que não têm tempo de ser digeridas, por que são sobrepostas e acumuladas.

O resultado é um efeito positivamente exaustivo: depois da catarse, vem o cansaço. Parece lógico. Respiramos e gritamos (mesmo que em silêncio) com os bailarinos, e terminamos exauridos como eles. Essa relação associativa, íntima, discute uma outra modernidade. Não mais a supremacia do indivíduo e de sua experiência pessoal, mas a replicabilidade dessa experiência, a característica de que essa experiência individual é parte de um todo, é reflexo de um todo, e se reflete em outros nesse todo. Não sabemos quais são as relações entre os bailarinos, não há uma narratividade que permita esse entendimento, mas nesse espaço, construímos uma relação nós mesmos com eles.

Enquanto Cantares reflete o intra-pessoal, e abrupto. o inter-pessoal, Cacti vai tratar de um outro aspecto caro à modernidade artística, que é a discussão das relações do indivíduo com a obra de arte. Uma forma de metalinguagem é proposta a partir de um exemplo que transforma o palco em espaço de museu e exibição de obras, que se preenche por bailarinos-esculturas-vivas, num primeiro momento, sobre pedestais modulares que constroem um cenário de fundo para as outras cenas da obra, acompanhada em diversos trechos por textos que ouvimos.

Esses textos dividem os três momentos de Cacti. Primeiramente os bailarinos se colocam como esculturas, em relação com seus pedestais, ao som de um texto que discute o processo colaborativo como tendência da obra de arte moderna. É nesse momento que entram em cena os cactos. De diversos formatos, em vasos brancos, são colocados pela cena, sobre os pedestais, empurrados para longe, carregados. Tem-se a impressão de bailarinos que se discutem enquanto matéria artística — não apenas a escultura, o resultado, o produto artístico, mas também a pedra, a argila, o material que faz a arte.

O fazer artístico continua em debate no segundo momento, que nos apresenta um duo, dançado ao som de um diálogo. Os bailarinos executam e ilustram esse diálogo, como se eles próprios estivessem falando acerca da coreografia que dançam. É uma conversa de bailarinos em ensaio, contagem de passos, marcações da coreografia, questionamentos sobre os momentos da obra e sua execução. E, assim, a obra se discute, discute o seu processo e o fazer artístico, característica metalinguística da terceira modernidade apresentada nesse programa. Esses maneirismos da sala de ensaio dão um acesso a um ambiente incomum para a maior parte da platéia, mantendo a diversão da cena, que, mais que auto-referencial, é auto-explicativa.

O texto da terceira cena apresenta o processo interpretativo da obra, com a menção a associações possíveis, tal qual a luz que mostra um “sol soberano que se desloca de leste a oeste” e “simboliza a jornada da vida”. Interpretações poéticas, constantes mesmo para obras que não têm em si um elemento de enredo, de história, e que são interrompidas por um desejo autoral transmitido em palavras, quando o texto decide por bem terminar a obra. A voz inda se questiona se seria este mesmo o fim, mas acaba decidindo que sim. É o fim.

E aí somos transportados para esse lugar de embate, entre a apreensão de uma simbologia, possivelmente exagerada, nas obras, e um outro extremo, de decisão sumária, simples, acerca dos caminhos ca construção da obra. Embate justo, que coloca a dança dentro desse espaço de possibilidade, de interpretação, de poesia, mas também de concretude, de contagem, de técnica, que se mescla no fazer artístico. Um único senão pesando no contra esse projeto: que uma obra que trata da discussão sobre a arte, ofereça ao público um programa de sala — inclusive, pela primeira vez, vendido ao público do TMSP — tão simplório, que não oferece referências e elementos suficientes para estender as possibilidades da discussão, e permitir que o público como um todo a integre. Comparado com o programa  da estreia de Cacti de 2014 (gratuito, diga-se de passagem), que incluía os textos a que ouvimos (no original inglês e traduzidos para o português), biografias detalhadas dos artistas envolvidos, e mesmo uma sinopse assinada pelo coreógrafo, dessa vez recebemos uma redução simples da sinopse — que não é, em si, ruim, mas que, no todo do programa, não justifica sua venda (ainda que seja a um preço bastante acessível).

Do intra-pessoal de Cantares, para o inter-pessoal de abrupto., e até a metalinguagem de Cacti, o programa de estreia da temporada 2016 do Balé da Cidade apresenta três lugares de modernidades, distintos, mas que conversam entre si. Um exemplo interessante do repertório da companhia: variado, mas que segue um projeto, e que aqui se retoma, se anunciando como um projeto que incentiva a inovação — posto que a(s) modernidade(s) lhe é central — ao mesmo tempo em que respeita e valoriza a história — retomando obras da companhia, e reafirmando sua contínua relevância. Um entendimento de modernidade que se tem a partir não só do novo, mas também da reflexão com a sua continuidade.

 

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