Adastra / Corpus / O Balcão de Amor | Balé da Cidade de São Paulo
O segundo programa do ano do Balé da Cidade de São Paulo traz três obras criadas para a companhia por coreógrafos que possuem experiências prévias com esse grupo. Mostram aspectos de continuidade, variedade de proposições, e tratamentos múltiplos de temas que não são necessariamente convergentes, mas constroem, entre grandes acertos e pequenos erros, a companhia que reconhecemos, novamente criticada no Da Quarta Parede.
De volta ao palco do Theatro Municipal, o Balé da Cidade de São Paulo apresentou três coreografias em sua segunda temporada do ano. Com a estreia de Corpus, de André Mesquita, apoiada por outras duas obras do repertório da companhia, Adastra, de Cayetano Soto e O Balcão de Amor de Itzik Galili, um programa de muitas semelhanças, que mistura versatilidade e permanência, mostra a técnica dos bailarinos da companhia e algumas tendências de seu repertório.
O programa começa com o ponto alto da noite, a coreografia de 2015, Adastra. Coreografia refinada, de linhas brutas e resistência, coloca os corpos dos bailarinos em tensões que resistem ao movimento, criando múltiplas torções sustentadas, levantamentos inesperados, movimentos de deslizar pelo palco, e uma possibilidade imensa de erro, presente em risco, mas que nunca se transforma em desastre, reafirmando a qualidade técnica do elenco do BCSP, que seduz mesmo de costas: uma das insistentes imagens do espetáculo traz os bailarinos subindo do fosso da orquestra para dentro da cena. Nessa posição, com os rostos escondidos do público, e toda a possibilidade de intenção sendo transmitida por seus corpos, iluminados indiretamente pela contra-luz, eles caminham se afundando no palco, para depois comporem seus pequenos grupos de movimentação.
Esse exemplo de posicionamento inesperado ecoa em outros elementos da obra, sobretudo na interessante construção de uma iluminação inusitada, composta de focos de diversos tamanhos, alguns deles moveis, e que criam efeitos de recorte no palco, separando espaços de ação, sem, no entanto, emoldurar os corpos o tempo todo, que dialogam também com o escuro, e não só com o iluminado.
Adastra também evidencia a qualidade criativa da direção da companhia, com o feliz encontro do coreógrafo, desse elenco, e da interessante música de Ezio Bosso, que criam um todo que seria bem recebido em qualquer companhia contemporânea relevante no mundo, e que temos o prazer de ver realizado aqui em Sao Paulo, e para o Balé da Cidade, que mais uma vez encontra com Soto — que havia anteriormente criado já duas peças para o grupo, em 2008 e 2014.
Novamente trabalhando com essa companhia, é impossível não notar uma repetição de uma imagem, aparentemente no gosto do coreógrafo: de algo que cai, invadindo a cena. A canela em pó, da obra de 2008, Canela Fina, e aqui, uma chuva de peças brilhantes, que parecem vir ilustrar o tema retratado pelo título da obra, Adastra, que vem da frase em latim per aspera ad astra (pelo esforço, o triunfo). Triunfo que se faz na frase pela imagem dos astros/ estrelas (astra), e que aqui parecem chegar para os bailarinos.
Não há, na dramaturgia, uma aparente dificuldade notável, esforço que leve a esse triunfo: a coreografia traz as marcas da movimentação de Soto, mas não parece mais difícil, mais complexa, mais áspera, que suas obras anteriores para o grupo, por exemplo. Nesse sentido, o esforço menos aparente diminui a glória a que se chega, diminuição não só metafórica, mas também imagética: a chuva dessas peças brilhantes infelizmente se realiza discretamente, e apenas no fundo do palco. Infelizmente porque, se entendida como a glória do título, nos deixa com o desejo de que tomasse a cena completamente, transbordasse pela platéia e nos invadisse desse triunfo compartilhado. Uma glória portanto não tão grande, mas que não diminui a realização da obra, recebida pelo público com entusiasmo e uma sensação geral de impacto.
Há menos impacto, e menos entusiasmo, na estreia da noite, Corpus, de André Mesquita. Executada com música ao vivo da Orquestra Experimental de Repertório — essa sim, efusivamente bem recebida —, Corpus vem ofuscada na segunda posição desse programa, trazendo à cena diversas e distintas possibilidades de compreensão do corpo, mas nenhuma delas parecendo aprofundada.
Em cena, vemos um predomínio de um corpo coletivo, mar de corpos que se movimentam arrastados pelo chão — principalmente — em torções e contorções de posições naturais, abrindo espaço para um grotesco. Esse grotesco também é alimentado pelas cenas que utilizam dos corpos como extensões: bailarinos sendo manipulados por outros bailarinos, e criando ainda mais carregamentos. Ainda dentro do tema das extensões, vemos esses corpos se projetarem para além de si mesmos, não só pelos apoios dos outros bailarinos, mas também pelo uso de acessórios, como as sapatilhas de ponta e as joelheiras, que permitem outras articulações não-naturais.
Nessa obra, as sapatilhas de ponta não estabelecem de fato uma relação com o clássico ou com o corpo do ballet clássico, e ficam em cena como elementos extra, quase dispensáveis da construção: criam novas possibilidades, mas nada especialmente inovador. Ao contrário, as joelheiras criam condições de movimentação inusitada pelo chão, e favorecem o aspecto arrastado já mencionado.
O projeto parece coerente, e a exploração do tema do corpo nunca seria um elemento cansado na dança contemporânea. Mas, frente à essa realização em específico, permanece a pergunta: para que fim? E, mais que isso, o questionamento de que corpo é esse que se faz presente pela sua insistente reafirmação, como se estivesse em cena a gritar “eu estou aqui!”, “olhe pra mim!”, entre outros pedidos de uma visibilidade que lhe prece negada, e cria um sentimento de pena desse corpo torturado que grita pedindo por atenção e que parece ignorado.
Aqui, me recordo do título de outra obra do coreógrafo para o BCSP, Cidade Incerta, de 2011, esta, marcada por uma visão do urbano que parece se sobrepor aos indivíduos. Esse apagamento das individualidades aqui se repete, e torna os corpos de Corpus corpos incertos. Indício que pode ser visto como consistente com as propostas e visões do coreógrafo, mas, por isso mesmo, inclusive, sugere abordagens previsíveis, ja vistas, ja ditas, inclusive nessa mesma companhia.
O programa se encerra numa nota um pouco melhor, com O Balcão de Amor, coreografia de 2014 de Itzik Galili que foca num humor simples, entre o entretenimento leve e o tipo de humor de programas apelativos.
Construída em cima de músicas de diversos compositores, encontramos melodias reconhecidas, de mambo e salsa, por exemplo, executadas com uma característica quase genérica de samba que contagia. O público cantarola a música e se diverte, porque a obra não demanda esforço. Não carrega muita complexidade ou dificuldade, porque é gostosa, mas simplória.
Parte de uma latinidade brejeira, trata de conquista e de sexualidade, mas parece transparecer uma negação estranha de sensualidade dentro desse contexto de jogo, de tentativa, que, quando examinado para além do riso fácil, parece deixar um espaço em falta: onde está o amor do título? Há claramente uma discussão de relações humanas, mas que foca mais num jogo de conquista barato do que em amor ou algo que o valha.
O que seria, segundo o programa, um “adorável absurdo”, numa terra como a nossa, e num momento como o nosso — em que tão necessário se faz falar de situações naturalizadas de assédio — parece forçar a linha, entre as mãos e os corpos dos bailarinos e bailarinas, que se tocam, mas não se encantam. O figurino em gênero neutro — homens e mulheres de calça e camisa social quase idênticas — parece remediar um pouco esse desvio, impedindo, pela falta de caracterização de personagens ou tipos, que o balcão de amor se transforme num balcão de outra coisa, mais perversa, escondida sob o riso das cenas.
Talvez seja essa uma leitura muito desconstrutiva, muito pautada por questões do nosso aqui e agora — e das estruturas histórico-sociais que geram esse aqui e agora. Mas, sobretudo nesse tipo de caso, em que temos um coreógrafo estrangeiro, numa companhia oficial paulistana, de certo modo discutindo uma latinidade genérica — que nem é exatamente a nossa, e vem de uma inspiração de uma viagem de Galili a Cuba —, é algo que precisa ser discutido, para que não se disfarcem no riso inadvertido questões maiores e problemáticas.