Les Étés de la Danse, 2015 | Alvin Ailey American Dance Theater
Les Étés de la Danse é um festival de verão dedicado à dança internacional, que acontece em Paris durante esse mês de julho pela 11ª Edição. O conceito é sempre grande: uma grande companhia internacional, em um grande teatro da cidade, com uma grande temporada de apresentações, em grande variação de preços, possibilitando grandes públicos (a maior edição foi a de 2012, que contou com 54 mil espectadores).
Organizado desde a fundação pelos seus criadores, Marina de Brantes e Valéry Colin, o festival trouxe para Paris, entre outras, temporadas do San Francisco Ballet, do Ballet Nacional de Cuba, do Les Grands Ballets Canadiens de Montréal, do Miami City Ballet, da Paul Taylor Dance Company, do Ballet da Ópera Nacional de Viena, e do Alvin Ailey American Dance Theater, que, pela quarta vez, é a companhia convidada para atual edição.
2015 traz ao palco do Théâtre du Châtelet 27 apresentações de 18 coreografias de 10 coreógrafos da companhia, sendo 10 estreias francesas e 8 aclamadas coreografias do repertório da Alvin Ailey. O festival também inclui um estágio de imersão para bailarinos, duas audições para a companhia e uma programação de filmes de coreografias da AAADT.
Além de uma noite de gala, com apresentação de trechos de diversas obras que integram o programa proposto para o festival, foi criado um Encontro-Espetáculo que, na tarde de 8 de julho, abriu o Châtelet para o público assistir a duas coreografias comentadas da companhia, apresentadas pelo único bailarino francês atualmente no grupo, Yannick Lebrun, que reconta a história da AAADT, além de contextualizar as obras assistidas e apresentar os bailarinos ao público.
O interesse desse encontro não é tanto o de atrair mais público para o evento, que já tem diversas apresentações completamente esgotadas e poucos ingressos disponíveis nas demais, e sim o de abrir um espaço a preço acessível para diversos públicos potenciais para a dança.
A escolha do repertório para essa tarde de encontro foi pontual e eficiente, numa mistura que não se repete em nenhuma das 27 apresentações da temporada, mas que funciona para exemplificar o trabalho da companhia: D-Man in the Waters, de Bill T. Jones; e a coreografia-assinatura de Alvin Ailey, Revelations.
D-Man in the Waters é uma coreografia de 1989, revisada em 1998 e que entra para a AAADT e 2014, já na gestão de seu terceiro e atual diretor artístico, Robert Battle (que também tem três coreografias suas — The Hunt, Takademe, e Strange Humors — no programa da temporada). Reconhecida com um Bessie (New York Dance and Performance Award), a coreografia de Bill T. Jones é tida como um dos grandes exemplos da estética pós-moderna.
Formalismo e musicalidade organizam uma obra que é oferecida como homenagem a Demian Acquavella, no momento da criação da obra, ex-bailarino da companhia de Jones, que lutava contra complicações da AIDS. O bailarino viria a falecer no ano seguinte à criação da obra, que reflete sobre sua luta e sua vontade de viver, mas sem apresentar exatamente um tom triste. A coreografia, pulsante e resiliente, mostra a insistência do humano em continuar.
Inteira coreografada com os bailarinos sorrindo, a obra não conta uma história precisa, mas passa a sensação de resistência, e comunica a felicidade de acreditar nas chances, na sorte, nas possibilidades de melhora. Um tocante depoimento do esforço de um indivíduo e de como a vida pode ser celebrada, mesmo através das dificuldades.
O tom solene do tema de D-Man, em relação a sua aparência que beira o leve, o esperançoso e promissor, também dialoga com a segunda obra do Encontro-Espetáculo, Revelations, do fundador da companhia, Alvin Ailey. Essa obra, sua décima coreografia, se inspira nas memórias do coreógrafo dos serviços religiosos batistas para levar o público à igreja, numa reconstituição coreográfica das sensações de que ele se lembra de ter enquanto criança, quando ia à igreja aos domingos.
Às vezes triste, às vezes jubilante, mas sempre esperançosa. É assim que Ailey caracteriza a herança cultural afro-americana, que ele pontua como uma das maiores riquezas dos EUA. Estruturada em dez cenas divididas em três partes, a coreografia apresenta o arrependimento, o desejo de cura pela religião, a purificação do perdão — ilustrada por uma cena inspirada nos ritos de batismo — e o sentimento da liberdade e a busca por ela.
A trilha sonora de cantos tradicionais retoma o que o coreógrafo chamava de memórias do sangue, suas memórias de sua vida no sul dos Estados Unidos e sua necessidade de contar a sua história, a história dos negros americanos, que não se contava na dança daquela época (e que continua uma história frequentemente marginal — tratando do mundo da dança, há pouco, em 30 de Junho, vimos a grande surpresa e comemoração pelo American Ballet Theatre ter elevado Misty Copeland ao posto de Primeira Bailarina, a primeira negra nessa função nos 75 anos de história daquele grupo).
O final de Revelations nos coloca no meio da congregação, durante um serviço de domingo, com as mulheres com chapéus e leques se abanando, e todos os fiéis que sentem, na celebração religiosa, a esperança e a alegria características desse rito.
A emblemática coreografia foi dançada em 71 países, em 6 continentes. Essa semana, ela levou Paris para a igreja — e uma igreja bastante incomum por aqui. A resposta do público foi intensa. Aplausos em cena aberta, gritos, acompanhamento da música com palmas, pessoas chorando, e tanto tempo de agradecimentos e mais aplausos quanto a direção permitiu, antes da breve apresentação dos bailarinos e o convite para as demais apresentações da temporada.
A relevância de Revelations é difícil de ser medida. Sua importância histórica é inegável, e a forma como traduz o rito em dança cênica foi paradigmática para a dança moderna dos Estados Unidos. A companhia é reconhecida por uma resolução do Congresso dos EUA como “vital embaixadora cultural estadunidense no mundo”, e a missão de Ailey foi levada adiante pela sucessora que ele nomeou, Judith Jamisson — diretora artística emérita desde que a mesma passou o comando da companhia para Robert Battle.
O projeto, já iniciado por Ailey, de criar novas obras, mas de preservar obras do passado, é continuado na companhia e se apresenta intensamente no programa dessa temporada dos Étés de la Danse. Sua afirmatividade e identidade fazem a companhia ainda mais relevante, sobretudo, quanto a sua inserção nesse festival, no cenário social e político que caracteriza a França, ainda herdeira de profundas desigualdades e preconceitos de diversas origens.
As reflexões de Ailey sobre racismo, sobre as dificuldades econômicas e sociais da criação de dança continuam tão vivas hoje quanto foram há mais de meio século. Comungar com suas obras é entrar no espírito de seus questionamentos, e fazer parte de uma história em construção e que sempre demanda mudança, melhoria e trabalho de qualidade.
“A dança é para todos. Eu acredito que a dança veio do povo e que ela deve ser sempre entregue de volta ao povo.” Alvin Ailey
A edição 2015 dos Étés de la Danse, com o Alvin Ailey American Dance Theater continua em temporada até 1º de Agosto do Théâtre du Châtelet, em Paris, com apresentações de segunda a sábado.
[Até o final da temporada, outros três programas da companhia nesse festival ainda serão comentados e criticados no Da Quarta Parede]