Críticas

Night Creature / After The Rain Pas de Deux / Exodus / Minus 16 | Alvin Ailey American Dance Theater

Alvin Ailey, Christopher Wheeldon, Rennie Harris e Ohad Naharin: de 1974 a 2015, a segunda postagem sobre a participação da Alvin Ailey American Dance Theater no Les Étés de la Danse é uma crítica sobre quatro coreografias que mostram a amplitude do repertório da companhia estadunidense.

A temporada da Alvin Ailey no Les Étés de la Danse em Paris foi organizada com 27 apresentações em programas mesclando 4 coreografias do fundador da companhia, 3 do atual diretor, e outras 11 de coreógrafos que foram convidados a criar para o grupo, ou que tiveram suas criações incluídas no repertório da Alvin Ailey ao longo de sua história. Os programas organizados tentam oferecer panoramas do trabalho atual da companhia, com noites dedicadas exclusivamente ao fundador, e outras noites mistas, com obras de diversos criadores e que dão uma ideia mais abrangente das possibilidades e capacidades do grupo.

A mais recente das coreografias do repertório, Exodus, de Rennie Harris estreiou em Nova Iorque em Junho de 2015, antes de vir para a temporada francesa, onde tem sido apresentada junto de obras de diversos outros criadores. O primeiro programa a colocar, na França, a estréia de Harris junto com uma obra do próprio Ailey foi o programa de 22 de Julho, que apresenta também Night Creature, coreografia de Ailey de 1974; um trecho de After the Rain, de Christopher Wheeldon, criada em 2005 e no repertório da Alvin Ailey desde 2014; e Minus 16, de Ohad Naharin, criada em 1999 e na Ailey desde 2011.

Trata-se, portanto, de um programa consideravelmente jovem e recente — considerando a exceção de Night Creature — mas que tenta mostrar, ao mesmo tempo, as raízes do grupo, e seus projetos mais atuais.

Criada sobre a música homônima de Duke Ellington, Night Creature parte de um comentário do compositor sobre as figuras que, ao saírem para a noite, esperam se tornar estrelas. É uma coreografia de sedução, de encontros e de propostas, um jogo de descoberta e de baile. Entre os indivíduos que passam, que convivem, que borbulham pela noite, podemos perceber diversas das influências modernas de Ailey. As formações no palco, entre as linhas e os aglomerados centrais, que viriam a marcar o estilo dos musicais da Broadway, carregam a referência a Lester Horton, enquanto as contrações nos corpos dos bailarinos, tanto de centro como de membros, fazem pensar nas construções coreográficas de Martha Graham.

A referência ao jazz aparece na música, mas também nos figurinos e na movimentação proposta por Ailey. O trabalho com os membros dos bailarinos é uma constante formação e quebra de linhas, numa sugestão de espontaneidade que se reflete também nos deslocamentos, amplos, rápidos, abundantes, associando o palco com a vivacidade e a agitação da noite e da vida noturna que são representadas.

Enquanto Night Creature trata desse momento vivaz e quase brusco, a coreografia seguinte, After the Rain Pas de Deux, se constrói sobre um tom de calma e intimidade. Originalmente criada para uma noite de homenagem a Balanchine, o pas de deux de After the Rain acabou ganhando notoriedade por si só, desprendido do restante da obra de Christopher Wheeldon. Foi nesse formato recortado que a coreografia chegou à Alvin Ailey, tratando, nesse curto duo, de um momento que, mesmo que sugira calma, pode ser pensado, a partir do título, como a calma que vem depois da tempestade.

Essa referência e homenagem a Balanchine se repercute no estilo da obra, que explora diversas características do trabalho do coreógrafo fundador do New York City Ballet. As torções, a insistente alternância de direção do movimento, as sustentações da bailarina na força, a grande dependência do equilíbrio e o risco decorrente dessa dependência, o figurino assim como a iluminação e a cena limpos, que não sugerem interpretações diretas, apontam para o ballet abstrato e leve, visual e sensível, que o coreógrafo russo propunha.

Há também uma alternância constante entre o rígido e o fluido: o corpo da bailarina desliza, navega e escorre pela cena, para depois se fixar em poses rígidas, que precisam ser manipuladas e contornadas pelo bailarino. Não havendo um tema desenvolvido, a abstração que o coreógrafo cria deixa espaço para a interpretação pessoal — seria uma obra sobre amor e proximidade, sobre encontros, sobre perdas? Não é possível oferecer uma resposta pontual — e talvez por essa não-precisão, pela grande abertura à interpretação, a obra tenha conquistado tão amplamente públicos e crítica. E ai, nesse ponto, fica a maior referência à inspiração de Balanchine: fazer dança para ser vista e para conquistar pelo seu apelo visual, enquanto movimento puro.

Num posicionamento bastante oposto, Exodus de Ronnie Harris tem um tema mais objetivo. Em meio à música eletrônica, o coreógrafo de Hip Hop faz uma obra que reflete sobre a sociedade atual, com um questionamento sobre a possibilidade dos indivíduos se elevarem para além de sua situação mundana. Inspirado pela morte de sua mãe, ele quer discutir um êxodo novo: não a passagem de uma terra para outra, mas a passagem da Terra para uma outra vida.

Essa busca se reflete nos figurinos de Jon Taylor, que abrem a obra com um apelo urbano, colocando o público numa situação de rua, de cotidiano, e que terminam a coreografia numa mudança completa, passando a roupas inteiramente brancas, quase sem distinção entre homens e mulheres, numa ilustração desse momento de passagem, de transmutação da carne em espírito.

Como um todo, temos uma obra forte e apoiada num tema forte. Porém, o tema se desenvolve pouco pela coreografia em si. O trabalho com os movimentos vindos do hip hop, apoiado em grande agilidade dos pés — com efeitos quase que de ilusão de ótica, com os movimentos intensos sendo sobrepostos no todo do conjunto dos bailarinos — acaba operando como uma faca de dois gumes. Se a um passo ele serve de testemunho da capacidade de alguns dos bailarinos da companhia a se adaptarem a estilos de dança diferentes, por outro ele mostra a dificuldade de outros bailarinos do grupo com a mesma tarefa.

O resultado é uma obra de interesse, de força e vigor intensos, mas de qualidade mista, em parte por sua execução que não está à altura do repertório da companhia, e em parte — possivelmente — pelo tempo de trabalho que os bailarinos tiveram com a obra. Sendo a coreografia tão recente, é possível que simplesmente não esteja madura ainda. A precisão dos bailarinos, que espera-se que melhore consideravelmente com o tempo e o trabalho com a obra, deve vir a revelar uma potência que, por ora, é notável apenas em um ou outro intérprete do conjunto.

Do outro lado do espectro, o programa da noite termina com uma das obras que mostra mais da integração e do potencial do conjunto da companhia. Minus 16 de Ohad Naharin é um agrupamento de trechos reciclados pelo coreógrafo de outras obras de sua carreira. Criada originalmente em 1999, a obra entrou para o repertório da Alvin Ailey em 2011, e permanece como o único exemplo, na companhia estadunidense, de interação com o público.

Misturando passagens altamente estruturadas e sequências orientadas de improviso, Naharin faz uma apresentação de alguns dos aspectos do seu método Gaga,  que pede que os bailarinos se desafiem e rompam com hábitos de movimentação. O resultado tem um caráter leve de loucura, de acidental, e um tom intenso de colagem: o fio condutor ou não existe ou não é aparente. A força da obra está, sobretudo, na primeira cena (vinda de Anaphaza, sua coreografia de 1993, e que foi replicada diversas vezes pelo coreógrafo), em que os bailarinos estão dispostos em cadeiras em um semicírculo e exploram movimentos explosivos sequenciais enquanto se despem da roupa social que vestem.

Depois disso, entramos num domínio de quase-aleatoriedades. A segunda sequência, um duo sobre música de Vivaldi, não carrega nenhuma ligação com o restante da obra, que tem sua força melhor expressa pelos conjuntos. Aqui, a única associação possível é de um lado pessoal: o duo foi dedicado a Mari Kajimara, que foi intérprete da Alvin Ailey e esposa de Naharin, tendo falecido em 2001.

A sequência final leva os bailarinos para fora do palco, onde eles buscam membros da plateia para voltarem à cena com eles. De volta ao palco, bailarinos e público dançam  e improvisam juntos, sobre ritmos diversos. Existe um aspecto de diversão, um tom de festa e celebração que é bem recebido pelo público, de forma geral empolgado com esse sentimento de participação, através daqueles poucos representantes que sobem à cena. Mas há pouco nexo no todo. Como ilustração do método, seria preciso de mais desenvolvimento, mais explicação, ou, pelo menos, mais participação do todo do público. Como uma obra completa — em si —, seria preciso mais coerência, mais continuidade daquilo que é apresentado.

Como fica posto, temos um acesso superficial a um universo — interessante, sem dúvida, mas — que muito rapidamente passa do intrigante para o questionável. A obra está lá. Ela sugere algo desconhecido e que se apresenta chamando a atenção, dizendo “eu existo”, mas o que fazer dessa existência, ou como compreendê-la, permanece incerto. No entanto, essa ideia de acesso, mesmo que parcial, parece interessante do ponto de vista da inclusão da obra nesse tipo de temporada da companhia, que tem como objetivo oferecer um acesso superficial a seu trabalho e história. Um mês de apresentações, ainda que intensas e abrangentes, não dão conta de representar um histórico como o da Alvin Ailey American Dance Theater. Nem deveriam dar conta — isso só seria possível em terrenos rasos demais, e esse não é o caso aqui. Mas abrem espaço para um panorama de possibilidades.

Essa característica é um pouco questionável quando consideramos que essa já seja a quarta participação da companhia nesse mesmo festival, em 11 edições. Já temos indícios de uma tradição, já é possível supor algum nível de familiaridade do público parisiense com esse universo, o que permitiria um aprofundamento maior, mas, aqui, estamos trabalhando com um plano de gestão que prioriza esse aspecto de pontualidade, de horizontalidade: de apresentação de diversos conteúdos, mas de formas mais rasas. Não se restringindo ao maiores sucessos da companhia, porém, já temos uma sugestão de ampliação do conhecimento do público sobre o grupo e sua produção. Podemos unicamente esperar que, em próximas oportunidades, essa sugestão continue presente, e continue abrindo espaço para a aproximação que o público — muito empolgado — parece desejar avidamente.

Alvin Ailey, Étés de la Danse 2015