Night Creature / Pas de Duke / The River / Revelations | Alvin Ailey American Dance Theater
O último dos posts do Da Quarta Parede sobre a temporada da Alvin Ailey no Théâtre du Châtelet é uma crítica ao programa em homenagem ao fundador da companhia, que apresentou quatro obras históricas do coreógrafo, dentro do evento que marcou o fim da temporada 2014/2015 de dança de Paris. A partir da reflexão “onde está Ailey na Ailey?” , se propõe uma interrogação sobre o projeto estético da companhia e sobre as possibilidades de continuidade dos projetos de seu fundador.
Dos 27 programas que a Alvin Ailey American Dance Theater apresentou dentro do Les Étés de la Danse, possivelmente o mais popular foi o programa Ailey/Ellington, que apresentou apenas coreografias do fundador da companhia, criadas entre 1960 e 1976. Aparte a icônica Revelations, as demais obras desse repertório focam o trabalho do coreógrafo com músicas do compositor Duke Ellington, que serviu diversas vezes como trilha para as criações de Ailey. Duas das quatro obras do programas já foram criticadas no Da Quarta Parede, e são aqui retomadas para uma reflexão do todo desse programa de representatividade autoral da Ailey em Paris.
Criada sobre a música homônima de Ellington, Night Creature, de 1974, parte de um comentário do compositor sobre as figuras que, ao saírem para a noite, esperam se tornar grandes estrelas. É uma coreografia de sedução, de encontros e de propostas, um jogo de descoberta e de baile. Entre os indivíduos que passam, que convivem, que borbulham pela noite, podemos perceber diversas das influências modernas de Ailey. As formações no palco, entre as linhas e os aglomerados centrais, que viriam a marcar o estilo dos musicais da Broadway, carregam a referência a Lester Horton, enquanto as contrações nos corpos dos bailarinos, tanto de centro como de membros, fazem pensar nas construções coreográficas de Martha Graham, por exemplo.
A referência ao jazz aparece na música, mas também nos figurinos e na movimentação proposta por Ailey. O trabalho com os membros dos bailarinos é uma constante formação e quebra de linhas, numa sugestão de espontaneidade que se reflete também nos deslocamentos, amplos, rápidos, abundantes, que associam o palco à vivacidade e à agitação da noite e da vida noturna que são representadas.
Não há exatamente uma história, mas um ambiente, uma situação. O trabalho com essa construção de tipos, ao invés de personagens específicos, identifica alguns dos aspectos da modernidade que são especialmente característicos de Ailey. Ainda que suas raízes venham de diversos pioneiros da Dança Moderna, a predileção pelas formas de dança abstrata remetem também ao Ballet Moderno — apresentando aqui uma outra referência de Ballet na obra de Ailey, para além da formação técnica dos corpos.
Esse aspecto de reflexão com o uso da técnica e de alguns formatos do ballet está presente também em Pas de Duke. Nessa obra de 1976 o coreógrafo brinca com a estrutura do pas de deux clássico, preenchendo a cena com movimentos de jazz, num paralelo que tem sido comentado desde a sua criação como uma interessante mistura de clássico e moderno, sobretudo quando observamos separadamente os movimentos dos membros superiores — que mantém o tom do moderno — e o dos membros inferiores — que apontam bastante do estilo clássico.
O que há de necessariamente diferente de um pas de deuxclássico é que esse duo não está inserido num contexto de uma narrativa. Porém, mesmo sem um enredo, continuamos a apreciá-la por seu valor de movimentação expressiva e criativa. Há um interesse especial em se observar a exploração nesse novo contexto da forma do grand pas de deux de Marius Petipa (em suas quatro partes: adágio, variação masculina, variação feminina e coda), que revela, mais uma vez, que a forma escolhida ainda rende, ainda pode ser explorada a partir de outros pontos de vista. Um outro exemplo interessante de diferentes abordagens para essa estrutura é o Tchaikovsky Pas de Deux de Balanchine, que também usa da estrutura formal, mas desenvolvendo movimento e técnica característicos do estilo do coreógrafo (e que, paralelamente, em mais uma reflexão, também se faz a partir do abstrato, não do enredo, não do ballet narrativo).
Novamente, a associação com Balanchine faz pensar no propósito do coreógrafo russo de criar um estilo estadunidense de dança, trabalhado desde o final dos anos 30, e que, com o modernismo nos EUA e as novas influências, realmente passa a se concretizar com os predecessores modernistas de Ailey, e com os trabalhos que o próprio Ailey viria a desenvolver com sua companhia.
No todo, a movimentação de Pas de Duke cria uma característica geral expressionista, que é ilustrativa tanto de Ailey quanto de seus predecessores modernos. Percebemos o trabalho com algumas linhas e posicionamentos clássicos, mas o jogo da cena é calcado no tom leve, que, em obras mais clássicas, só costuma repercutir em temas igualmente mais leves, frequentemente isolados no cômico.
Dentre as obras de Ailey nesse programa, The River é a que mais demonstra o apreço do coreógrafo pelo estilo clássico, indicando como o estilo e a técnica clássicos repercutem dentro de sua criação autoral. É especialmente interessante ver esse desenvolvimento sobre o tema aquático de The River, porque os trabalhos do coreógrafo partem frequentemente de princípios que podem ser associados à ideia da água, sobretudo no que toca o uso da resistência do movimento, como se os bailarinos criassem novas densidades para o espaço cênico.
Novamente, não há um enredo, mas o tema se desenvolve em movimento: as cenas são diversos pontos da trajetória de um rio, e suas variáveis instâncias de apresentação. Além da resistência, construída sobretudo pelas torções e sustentações dos membros, há um emprego constante de instantes de agilidade, de fluxo e confluência, que se repetem nos conjuntos da obra.
Seu ponto mais interessante, o primeiro pas de deux, construído sobre a imagem de corredeiras, insiste no abstracionismo da maior parte das obras de Ailey, e reafirma a valorização do movimento e de sua observação. Mas, no todo, é difícil verificar uma constância na forma de abordagem que o coreógrafo tem com a obra. E talvez constância esteja longe de ser o objetivo pontual do coreógrafo — sobretudo num trabalho que discute algo tão variável como um rio que corre —, mais interessado em entretenimento e em prazer visual através da dança.
Porém, em algumas obras, como na emblemática Revelations, de 1964, acabamos por procurar e encontrar mais constância e mais discussão da realidade social do coreógrafo — como vemos também nos predecessores modernistas de Ailey. Essa obra, sua décima coreografia, se inspira nas memórias do coreógrafo dos serviços religiosos batistas para levar o público à igreja, numa reconstituição coreográfica das sensações de que ele se lembra de ter enquanto criança, quando ia à igreja aos domingos.
Às vezes triste, às vezes jubilante, mas sempre esperançosa. É assim que Ailey caracteriza a herança cultural afro-americana, que ele pontua como uma das maiores riquezas dos EUA. Estruturada em dez cenas divididas em três partes, a coreografia apresenta o arrependimento, o desejo de cura pela religião, a purificação do perdão — ilustrada por uma cena inspirada nos ritos de batismo — e o sentimento da liberdade e a busca por ela.
A trilha sonora de cantos tradicionais retoma o que o coreógrafo chamava de memórias do sangue, suas memórias de sua vida no sul dos Estados Unidos e sua necessidade de contar a sua história, a história dos negros americanos, que não se contava na dança daquela época (e que continua uma história frequentemente marginal no mundo da dança). E o final de Revelations nos coloca no meio da congregação, durante um serviço de domingo, com as mulheres com chapéus e leques se abanando, e todos os fiéis que sentem, na celebração religiosa, a esperança e a alegria características do rito.
A importância histórica de Revelations é inegável, e a forma como traduz o rito em dança cênica foi paradigmática para a dança moderna dos Estados Unidos. Grande parte desse reconhecimento responde — ainda — pela popularidade da companhia. Não que seja desmerecido, não que seja uma companhia de trabalhos menos relevantes: o trabalho — em especial do elenco — é elogiável em muitos sentidos.
Permanecem algumas questões, sobre o quase nepotismo da direção. Quando Ailey determina quem deve sucedê-lo na direção, há um entendimento fácil: foi em Judith Jamison que o coreógrafo viu as maiores esperanças para a continuidade de seu projeto. Porém, como garantir, após a sua morte, essa continuidade? Essa é a missão — ou pelo menos espera-se que seja — para o diretor atual, Robert Battle (que foi, ele também, escolhido pela então diretora Jamison). Uma missão difícil, sem dúvida. Manter viva uma trajetória significa decidir novos rumos, para se manter em movimento. E o tempo todo será possível questionar se esses rumos são os rumos que Ailey escolheria.
Mas — encaremos os fatos — ninguém tem acesso às escolhas de Ailey. O problema que, frequentemente, se passa com esse tipo de companhia de criador, que inclusive carrega o nome próprio de seu fundador, é que continuamos, 26 anos após a sua morte, buscando Ailey na companhia. Além das coreografias do criador, remontadas, preservadas, mantidas em repertórios (a cada vez mais e mais restritos — faz-se necessário observar), quais as formas como ele pode se fazer presente na Alvin Ailey American Dance Theater atual?
Como pode acontecer, com o tempo há cada vez menos Ailey na Ailey. Reflexão que vai para além da simples contagem de obras — mas mesmo a simples contagem é um pouco impactante: são atualmente apenas 4 as obras de Ailey no repertório (enquanto já temos 3 de Robert Battle, e 2 de Rennie Harris, por exemplo). Dentre as muitas preferências ou crenças estéticas do criador, ainda vemos as tentativas de mistura de novos estilos nas obras mais recentes — mas não vemos tanto sua característica maior de misturar os estilos dentro da criação de uma única obra, o que parece ter sido substituído atualmente por uma mistura de estilos no todo do repertório (com uma obra de Street Dance e outra de jazz, por exemplo).
Vamos entrevendo, com o tempo da companhia, uma disputa entre dar continuidade àquilo que o coreógrafo propunha, e dar continuidade à companhia, em si e por si. Que a companhia exerce um fascínio é algo que não se pode negar, mas, quanto desse fascínio ultrapassa alguns marcos — como, por exemplo, 1960 e Revelations — e se repercute no todo, é uma interrogação cada vez mais profunda, e de esclarecimento cada vez mais tênue. Ao mesmo tempo, para cada vez que é possível questionar propósitos e direções da Ailey, existem múltiplas vezes em que é preciso reafirmar a força e a representatividade da companhia e de seus marcos. É nessa força e nessa representatividade, talvez mais do que em um projeto artístico autoral específico, que reside o interesse que a companhia e seu criador continuam despertando.