D. Hulda, ave rara da dança
Essa semana Hulda Bittencourt nos deixou, mas ela continua: os frutos do seu trabalho são muitos, são enormes
Eu não tinha nem 20 anos, parece que foi há uma vida. Era o meu segundo dia na sede da Cisne Negro, eu acompanhava a penúltima semana de ensaios da montagem daquele ano do Quebra Nozes, clássico de Natal da cia. Sentado num canto da sala de ensaio, entre as correções e a passagem corrida do espetáculo, eu lia um livro enquanto os bailarinos se preparavam, e não vi a chegada de uma cadeira alta, quase um trono, nem da figura mítica que sentou nele, Hulda Bittencourt.
Uma voz profunda me puxou da distração, me perguntando meu nome. Eu levantei correndo, carregando livro, mochila, sapato, caderno, estojo, depressa na direção dela, que eu ainda não tinha tido o prazer de conhecer, e só tinha visto de longe. Eu fui dizendo quem eu era, e comecei a explicar o que estava fazendo ali, mas ela já sabia, e me disse pra ficar à vontade.
Eu fiquei atento ao olhar dela pro ensaio. Os comentários breves e precisos. Parecia que nada escapava. Guardei daquela figura uma imagem de exigência, que mais tarde, conhecendo a sua história, e o que a pessoas mais próximas dela contam, pareceu se confirmar. Jeito de professora, e dessas que sabem muito. Dessas que querem te transmitir muito. Sabem que o mundo dá pouco tempo, então têm pressa, e cobram, fazem questão de dar o melhor e de que os alunos deem o melhor. Deixam uma marca.
Essa semana, no anúncio do falecimento de D. Hulda, eu vi, como nunca antes, manifestações carinhosas e, acima de tudo, agradecidas pelo tanto do seu trabalho. Artistas tocam as pessoas. Professores ainda mais. D. Hulda foi os dois, intensamente.
Discípula de Maria Olenewa, ela foi tarde pra dança, e cedo pro seu ensino. Nascida em 1934, nos anos 1950 já dava aulas, no início dos 1970 se forma pela Royal Academy, método que também adota em sua escola. O Estúdio Cisne Negro, que ela funda em 1959, é uma das escolas mais tradicionais de São Paulo, uma das histórias mais longevas da nossa dança.
A companhia Cisne Negro já nasce histórica, em 1977, da mistura improvável das alunas do Estúdio com uma turma de universitários de Educação Física da USP. Dois anos depois, a companhia ganha seu primeiro APCA. É o primeiro de muitos prêmios que carregam o nome do grupo, vários deles para intérpretes da companhia: a Cisne sempre foi um celeiro de talentos, nutridos com cuidado e exigência pelos olhos atentos de D. Hulda.
Beirando os 45 anos da companhia, os mais de 60 da escola, outros tantos de sua carreira, e de uma vida que mudou a nossa dança, a gente olha pro legado de D. Hulda como herança nossa. De sua família, que continua seu trabalho da escola e do grupo, mas também do sem-número de profissionais, de amadores, de artistas, e de gente que passou pelas salas e pelas plateias da Cisne — ave rara dos palcos, como foi chamada uma vez, num apelido que justamente se estenderia à sua criadora.
D. Hulda se inscreveu com intensidade na história. Sua despedida vem com gosto de saudade, mas coberta de reconhecimento. Os agradecimentos transbordam. Não tive o prazer de longas conversas, de ouvir dela a sua história. Mas tenho o prazer de ver os frutos de seu trabalho, e de olhar de longe, admirado com a força e a continuidade do seus esforços pela dança. Sementes por todos os cantos. Passaremos gerações colhendo e saboreando seus frutos. Obrigado.
[Ao longo de 2021, os textos publicados na 3ºsinal receberam o apoio da Lei Emergencial Aldir Blanc do município de São Paulo, que viabilizou uma série de ações como a 3ºsinal e a reformulação do site Outra Dança]