Dança em ensaio
Pra quem é de palco, ensaio é coisa de todo dia. Pra quem é de plateia, é quase alienígena. Você quer ser abduzido?
Eu sempre gostei de ver ensaios. A obra em processo, o pensamento pulsando entre bailarinos criando, fazendo surgir uma coisa que antes não existia. É algo extremamente intenso, delicado, e também íntimo — e por isso eu quase nunca peço pra ver ensaio e prefiro esperar um convite.
Eu gosto de ensaio de obra pronta, a preocupação de limpeza e afinação, mas nesse caso eu to falando de criação, mesmo. Tem algo ainda mais especial em acompanhar esse momento, completamente desprovido dos encantamentos e das distâncias do palco, um tanto cru e impreciso. É a massa sendo formada, sovada, crescendo. É alquimia. Coreógrafos e bailarinos interrogando corpos e buscando formas de fazer, assuntos para criar, movimentações pra dar sentido.
Eu também não to falando de compartilhamento de processo. Esses eu particularmente não gosto, porque me soam como o não-lugar da dança. Não é uma obra, mas também não é ensaio. É o inacabado, mas revestido com uma cara de acabamento. É uma coisa que começa problemática porque te diz “eu espero chegar em um lugar que não é esse, mas vou dar uma ajeitadinha no onde estamos agora, pra não parecer que estamos perdidos”.
E o processo tem, naturalmente, um tanto de estar perdido. Um tanto de descobrir onde se está, onde se quer estar, onde se pode chegar — um lugar que nem sempre faz parte do projeto da obra, e nem sempre está no resultado dela. É esse momento que eu gosto. Uma coisa meio universo paralelo. Pode ser comum pros artistas, é parte do cotidiano deles, mas pra quem é de plateia, não de palco, é totalmente alienígena.
Sobre algumas perguntas que me fazem: não, ver ensaio não estraga o meu gosto pela obra. Eu não faço questão da surpresa, e eu não vou ao teatro pra desvendar mistérios ou ficar sabendo do que eu não sabia. Não tem furo jornalístico aqui. Uma obra boa pode ser vista (e apreciada) muitas vezes. Não, o ensaio não substitui o espetáculo. Ver o processo é algo que te conta de como a obra chega a ser o que ela é, mas não altera o que, de fato, ela será, quando estiver pronta pra ser vista. Por isso, não, não da pra criticar ensaio. A crítica discute onde o processo chegou, em seu momento de contato com o público, ver ensaio me conta dos caminhos dos processos, são pontos distintos. A obra pronta é texto, o ensaio é contexto. A obra pronta é uma declaração pública, o ensaio é informação privilegiada. A obra pronta é fruto, o ensaio é raiz, caule, flor, folha, fotossíntese.
Não, eu não tenho expectativas de que a obra no processo seja a mesma que eu vou assistir depois, finalizada. É preciso praticar o mesmo desapego que se espera dos artistas: nem tudo que cabe no processo cabe no espetáculo. E sim, eu entendo que no ensaio vários elementos fundamentais pro pensamento artístico da obra estão faltando. E eu adoro isso. É o melhor momento pra apreciar a matéria mais viva e mais forte da dança: o pensamento sobre o corpo em movimento. Sem coberturas, enfeites, disfarces, desvios.
Os ensaios às vezes contam muito mais sobre os artistas do que as obras isoladas. E é parte do meu trabalho, isso. Entender os artistas, as construções, as propostas. Tanto pra pesquisa quanto pra crítica, eles aproximam, e então tem sempre um cuidado em se manter do lado de lá. Você não faz parte disso. Isso não é exatamente pra você. Mas, por alguns instantes, você é convidado a entrar nesse outro universo, abduzido pro coração pulsante de uma obra em criação. É surpreendente, delicioso, eu gosto, e recomendo.
[Ao longo de 2021, os textos publicados na 3ºsinal receberam o apoio da Lei Emergencial Aldir Blanc do município de São Paulo, que viabilizou uma série de ações como a 3ºsinal e a reformulação do site Outra Dança]