Críticas

Winterreise | Balé da Cidade de São Paulo

Anunciada como um “concerto dançante”, Winterreise coloca o elenco do Balé da Cidade como figurante do que parece ser um recital de canto. Do melancólico ao monótono, a dança continua menos aplaudida que a música, e começa a aparecer uma preocupação sobre os caminhos que o BCSP toma.

Depois de uma temporada estranha em março, o Balé da Cidade de São Paulo volta ao Theatro Municipal para apresentar Winterreise, coreografia assinada por Ismael Ivo, atual diretor da companhia, para o BCSP. Criada a partir da obra homônima de Schubert, Winterreise foi proposto pelo diretor e coreógrafo como um concerto dançante — sua segunda obra na direção da companhia, e, novamente, sob uma nova categoria para aquilo que se apresenta.

As 24 canções do ciclo de Winterreise são melancólicas e arrastadas, como os passos daqueles sobre a cena pisando pela neve artificial que cobre o palco. ‘Daqueles’ porque não são só bailarinos que estão em cena, o elenco do BCSP sendo acompanhado por um barítono e um pianista, que executam a obra ao vivo. O estranho aqui é que, apesar da direção ser do Balé da Cidade, e da obra se apresentar como uma obra da companhia de dança, não são os bailarinos que importam em Winterreise, mas o canto.

Tudo é branco, lento e pesado, e o Theatro Municipal parece até mais frio. Cenicamente, o efeito funciona. Somos transportados para esse universo de melancolia e quase desespero, todo cantado em alemão e legendado — estratégia que deixa marcada a estrutura que privilegia as canções, e não a dança. Há pouco aproveitamento dos bailarinos em cena, e o cantor, o tempo todo presente, não tem o corpo (nem de longe) tão expressivo quanto sua voz. O resultado é, de certo modo, interessante de se ouvir — as canções são bem executadas —, porém, menos interessante de se ver: o Balé da Cidade continua mal ensaiado, a coreografia continua simplista, e a obra depende de outros efeitos cênicos e musicais para se sustentar.

As legendas, que parecem um grande problema ao início do espetáculo (como ler e ver o brilhante elenco do BCSP ao mesmo tempo?), se mostram um alívio: frequentemente não há nada para ser visto no palco, e a leitura ocupa os olhos. De fato, o que mais se move em Winterreise são as cadeiras que estão no palco. Elas são movidas constante e gratuitamente pela cena, só para, logo depois, mudarem outra vez de posição. Entre esses caminhos há uma ou outra imagem interessantes, como na passagem da 8ª para a 9ª canção, em que vemos uma figura com as cadeiras todas penduradas nos braços, parecendo asas. Sim, uma bela imagem, mas que não nos leva para nada além dos breves instantes em que aparece, tendo o mesmo fim de outras imagens, como os figurinos, as malas que aparecem mais ao final da obra, as sombras projetadas sobre um ciclorama, e mesmo a neve pelo chão.

A insistência com as cadeiras — forma uma linha, desarruma a linha, amontoa, reorganiza, forma a linha em outra parte do palco — se assemelha à estrutura corporal do cantor: ele fica parado olhando pra cá, fica parado olhando pra lá, fica parado ajoelhado, levanta e continua o mesmo processo. Não que se espere que ele pudesse dançar com a mesma presteza com que canta as longas canções. O problema é que a predominância desse não-bailarino no palco não se justifica. Não poderia ele cantar ali, ao lado do piano, e deixar a movimentação para aqueles que conseguem fazê-la? Enfim, por que um dos melhores elencos de São Paulo está em cena para mover cadeiras, agitar a neve artificial, e repetir meia dúzia de movimentos para um cantor?

Estudos de relatividade linguística sugerem que certos povos tem mais de 300 palavras para tratar da neve. Podemos supor que, na neve, esses povos vejam uma variedade incrível. Aqui, não precisamos de 300 palavras. Uma, duas, vinte das cenas de Winterreise parecem intercambiáveis nessa proposta de melancolia monótona. Não encontramos um concerto dançante, mas um recital de canto, em que “alguns amigos bailarinos” foram chamados às pressas para ilustrar uma noção geral — sem grande sucesso na realização. Com a estreia inserida na programação das Quartas Musicais do Theatro Municipal, é inevitável questionar se o Balé da Cidade está assumindo um triste lugar como mero Corpo de Baile da casa, servindo de acessório e cenário para a lírica.

Se ao final da temporada passada, com Risco, o sentido geral das críticas era permissivo, condescendente, e insistia no “aguardemos os próximos trabalhos”, agora, os próximos trabalhos não poderiam chegar rápido demais. Num momento tão drástico da cena da cultura e da dança paulistana — mas um momento não menos potente e que permanece cheio de produções de valor —, continuamos à espera de que o BCSP encontre seu rumo, para além das propostas das (novas) classificações para as obras. Enfim, o que significa termos um “concerto dançante” como a estreia que segue uma “instalação coreográfica de dança”? Trata-se de fato de uma busca por novas fronteiras para a arte dessa companhia, ou estamos vendo nomenclaturas incertas que tentam, sem conseguir realmente, justificar os problemas das obras? E por que tantos rodeios para dizer aquilo que o BCSP faz, e há muito tempo, e muito bem — dança? Mais que nunca, é imperativo mostrar que o Balé da Cidade ainda faz dança, e que faz dança bem.