Por 7 Vezes | Quasar Cia de Dança
Em seu aniversário de 25 anos, a Quasar Cia de Dança apresenta Por 7 Vezes, uma discussão da característica segmentada do corpo, que aparece no palco dividido em oito cenas que revelam as sete partes da divisão proposta pelo coreógrafo: Olhos, Boca, Braços, Coração, Vísceras, Sexo e Pernas. O tema se articula profundamente com a companhia e seu momento de aniversário: o estilo que o coreógrafo residente Henrique Rodovalho construiu ao longo desse tempo, sobretudo a partir de 1994, é identificado no Brasil e pelo mundo, a partir de sua característica de segmentação.
A segmentação pode ser vista nos trabalhos corporais da companhia há quase uma década. As propostas do coreógrafo nunca seguiram o padrão do movimento clássico (que realiza sempre o menor esforço e deslocamento possível de uma pose a outra), estruturando e revelando os caminhos do movimento pelo corpo, parte a parte, membro a membro, junta a junta, articulação a articulação, de forma que apresentar cenicamente uma discussão das partes, dos segmentos do corpo, soa bastante atrelado ao histórico da companhia e a seu momento de pensar novos caminhos, que se mostram não apenas nos conteúdos que a companhia tem apresentado (como em no Singular, o espetáculo anterior), mas também em seus formatos: a proposta do Por 7 Vezes foi desenvolvida já com a ideia de criação de um filme a partir das coreografias do espetáculo, cujo processo de criação também foi registrado no documentário longa-metragem Corpo Aberto.
O espetáculo novo é em si bastante diferente do repertório que a Quasar construiu. Investindo nessa segmentação em apenas sete partes, a obra traz oito cenas de dez minutos cada, o que, no trabalho de Rodovalho aparece bastante destacado da tradição de coreografias mais curtas e em números maiores em cada espetáculo do coreógrafo. Essa estrutura dá um ar de prolongamento à obra e a cada uma das cenas. Vemos não apenas uma cena sobre cada parte do corpo, mas dentro de cada cena encontram-se entre duas e quatro cenas menores, como se o trabalho com o tempo maior tivesse feito a companhia criar mais repertório para cada parte do corpo, e uma quantidade considerável desse material tenha sido agrupada em cada cena.
De forma que não há apenas a discussão dos olhos, mas a discussão dos olhos em três instâncias diferentes, e assim por diante, o que pode aumentar a dificuldade de compreensão do público daquilo que é apresentado, sobretudo quanto às passagens de uma parte do corpo à outra. As partes em si tem desenvolvimentos muito variados. Auge do espetáculo, Coração é compreensível por si só. A destreza da direção no agrupamento dos elementos cênicos, dos bailarinos, música, figurino e iluminação tem seu melhor desempenho nesta cena, que é perceptível e compreensível, dentro do espetáculo ou mesmo isoladamente, como aquilo que represente: o coração.
Sexo e Pernas também são identificáveis, sobretudo pela movimentação privilegiada e associativa das partes, procedimento que foi evitado, contudo, na composição das outras cenas, que demandam um pouco mais de interpretação do público para o entendimento de suas propostas. Uma vez apontada qual parte trata dos Olhos e qual parte trata da Boca, por exemplo, é fácil recriar as associações sensoriais e construtivas que são demonstradas em cena. Braços e Vísceras, porém, pedem bastante abstração, que é dificultada com a falta de indicações na obra, salvo a menção breve no programa, da divisão das cenas por partes do corpo.
A cena de abertura do espetáculo, Escuridão, é uma proposta que, junto com Boca demonstra o caráter inovador do trabalho de iluminação por video mapping desenvolvido, que dá continuidade às propostas sempre de segmentação do desenho de luz que Rodovalho assina. Em Escuridão os bailarinos estão limitados pela (falta de) luz, que recorta os desenhos dos corpos e dos movimentos determinando qual o acesso que o público tem à coreografia. Já em Boca, um pequeno foco de luz se movimenta pelo palco acompanhando os movimentos dos bailarinos, com todas as associações oclusivas, fechadas e mordidas que se pode ter dessa parte do corpo.
O resultado do espetáculo é grande. A coreografia tem bastante conteúdo, que se soma à música criada para o espetáculo, que se soma aos figurinos impactantes, que se somam à iluminação e projeção, que se somam ao cenário (este, um pouco vago, mas provocador, bem alimentado pela variação da cor da luz em Coração, ficando, no restante do espetáculo, como sugestões de luz e sombra sobre vagas formas de fibras/ músculos/ veias/ nervos/ neurônios/ fluidos corporais e o que for possível interpretar deles). Toda essa soma resulta, visualmente, em sobreposições de informações fortes, sujeitas às dificuldades das estéticas de acúmulo. O olho foge de um a outro elemento, e nesse sentido fica interessante ter mais tempo a cada cena, para melhor digerir os elementos todos. Em oposição, esse processo digestivo ainda rouba um pouco da atenção, risco que a companhia se propõe a correr com o formato em que o espetáculo estreou.
Riscos também temáticos e de desenvolvimentos, com o processo singular adotado para esse trabalho (propostas de roteiro, discussões da equipe sobre os significados das partes, proposições para as construções da coreografia), que só vêm investir nas propostas da Quasar, que parece ciente de seu lugar de destaque no cenário da dança brasileira, ciente de sua referência em movimentação, ciente de sua característica autoral, e disposta e continuar e a se reinventar, reafirmando sua posição e a qualidade e potência de seu trabalho.
no Singular foi um primeiro passo numa nova direção para a Cia. Por 7 Vezes é também um novo passo, porém não são projetos contíguos esses dois. Talvez pelo deslocamento entre uma e outra ideia (Por 7 Vezes já estava sendo concebido quando aconteceu no Singular), ou talvez simplesmente pelo desejo de experimentar e de inovar, os trabalhos mais recentes da companhia não se mostrem linearmente, o que não é de forma alguma um problema: linear nunca foi a qualidade da Quasar, articulada, desdobrada, segmentada, sempre revelando novas partes e novas organizações, com o corpo todo, e em suas partes, e, nesse último caso, por sete vezes.