Críticas

Martha Graham… “Memórias” | Studio 3 Cia

Já tendo trazido para a França, entre 2012 e 2014, as últimas quatro obras de seu repertório, o Studio 3 Cia apresentou este mês Martha Graham… “Memórias”, de 2010, no Théâtre des Champs-Elysées, em Paris. O espetáculo marca, na companhia, o início da parceria entre José Possi Neto, que assina a direção da obra, e o coreógrafo e diretor artístico do Studio, Anselmo Zolla.

A proposta, idealizada por Possi, não trata de uma reconstrução de coreografias de Graham, mas de uma abordagem biográfica, inspirada por seu livro Memória de Sangue, proposta em cena como um reconto da vida da coreógrafa estadunidense, conforme registrada e imaginada pela equipe do Studio 3.

Um grande trabalho visual, pautado pelo cenário de Heloisa Albdenur e Possi, emoldura uma construção de movimento que parte da técnica sistematizada pela própria Graham, para propor em uma livre criação de Zolla, orquestrada pelo diretor num formato quase-teatral quase-operístico de onze cenas e um prólogo, que são apresentadas precisamente pelo Programa, num libreto que remete às estruturas mais tradicionais do Ballet Clássico, com cada cena sendo uma proposta pontual e traduzível, ao mesmo tempo, em dança e em palavras.

Nesse sentido, Martha Graham consegue articular um aspecto interessante do trabalho da coreógrafa que inspira a obra, reconhecida como uma das grandes mães da dança moderna e que manteve, ao longo de sua carreira, um gosto pelo aspecto narrativo incorporado à dança, como é notável ao longo de diversas de suas obras, especialmente no apreço dado à mitologia clássica, mas também na construção de uma nova mitologia, articulada em dois tempos: a um passo, construindo uma mitologia pessoal, uma Graham personagem de si mesma; a outro, construindo uma mitologia dançada para os Estados Unidos, colocando em cena diversos trechos e elementos da história da formação do país.

Dentro dessa perspectiva, a obra do Studio 3 tem um foco claro: a mitologia pessoal da coreógrafa, apresentada em cena como personagem, se descolando se seu destino e caminhando por suas memórias, descobrindo a Dança, descobrindo a si mesma, o corpo, o amor, e a arte. Para trazer à cena a ideia dessa lembrança, a metáfora colocada no palco é a da Luz Fantasma, o poste de luz que permanece aceso sobre o palco mesmo após as apresentações, e que serve, no métier, uma função tanto prática (impedindo que algum desavisado caia do palco escuro) quanto simbólica (a um passo afastando os espíritos que rondam a casa, a outro, honrando a sua memória).

A platéia, recebida por essa luz-personagem já em cena, em meio às telas que compõem o cenário, se descobre num espaço mítico, que permite uma companhia brasileira ressuscitar Martha Graham e contar sua história. O conto usa de estruturas mistas: além da coreografia e da cena, a obra conta com texto, que oferece acesso mais direto à própria Graham, através de suas palavras, e também à interpretação que Possi faz de sua homenageada. Essa interpretação é marcada, pontualmente, pela presença de uma edição de um dos monólogos de Joana (a Medéia brasileira da peça Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes), emendada com um dos textos de Graham.

A mistura é certeira. Permeia a homenageada com um pouco da essência dos criadores da obra. Faz uma homenagem (e um espetáculo) que não poderiam ser realizados por outras companhias e em outros lugares. O tema, não sendo é alheio à coreógrafa, que tem uma versão em dança de Medéia (Cave of the Heart, de 1946) entra na proposta e dá  a ela um gosto mais particular, validando sua inserção e o resultado obtido.

À parte a referência à Medéia, a única outra obra da coreógrafa que é colocada no enredo do Studio 3 é o emblemático solo de 1930, Lamentation, aqui transportado e transformado: ao mesmo tempo em que vemos uma bailarina com um figurino muito próximo do original de Lamentation, há em cena um banco onde uma bailarina, e depois diversos outros, num canon, fazem uma variação de Zolla para a obra. Homenagem sincera e astuta, e uma das cenas mais interessantes do espetáculo, junto da cena que investiga a história de Graham com o pianista Louis Horst, grande influência para a emancipação da bailarina, e personagem fundamental no estabelecimento de sua escola e companhia.

É interessante que essas cenas de maior interesse sejam pontualmente também as cenas menos narrativas, menos descritivas da vida de Graham. Ainda que tragam um material inspirado por sua biografia, pautado por eventos de sua história, nelas o que é apresentado é da matéria da dança como a própria Graham a buscava: enquanto emoção, enquanto retrato sensível da realidade. Mais que um retrato-falado, um descritivo de fatos e eventos, aqui a estrutura coreográfica ultrapassa a estrutura teatral, investindo no sensível e de fato sensibilizando o público. Deixa de ser preciso dizer o que acontece, porque a própria dança apresenta e transmite, nos colocando em contato com Graham – ou pelo menos com a Graham vista pelos olhos da equipe do Studio 3.

Todo memorial é um risco: há uma quantidade grande de interpretação que se sobrepõe a fatos e altera percepções; uma quantidade muito grande de material que precisa ser selecionado e trabalhado para apresentação. Homenagear Martha Graham é algo natural, em dança. O que particularmente interessa no trabalho e na proposta do espetáculo do Studio 3 é que a escolha não vem de um lugar individual: não se trata de um bailarino prestando homenagem à sua mentora; a homenagem do Studio 3 é da Dança, pela figura de Graham, por sua importância, e pela relevância que ainda têm suas “Memórias”.

Graham... Memorias