Críticas

deGeneration | Hofesh Shechter Company

Trabalhando com o elenco jovem de sua companhia, Hofesh Shechter se insere em uma esfera de treinamento e preparação de seus possíveis futuros dançarinos. Para oferecer a esses bailarinos experiências reais em trabalhos de dança, o coreógrafo montou um espetáculo com três coreografias suas — duas das primeiras de seu repertório, e uma mais recente — estabelecendo contatos entre seu elenco junior e alguns dos elementos que fazem parte de sua identidade e escritura coreográfica.

Já na primeira obra do programa, Cult, de 2004, fica lançado o principal questionamento possível frente a um elenco Junior: se a obra seria melhor com bailarinos experientes. A peça tem uma temática forte, anunciada pela trilha sonora — “algo pelo que lutar, algo pelo que viver, algo pelo que morrer”. Os bailarinos-personagens são colocados em cena enquanto indivíduos e grupos e os processos de estar juntos e estar separados vêm à tona. Individuação e individualidade frente aos outros é o que se repetem nas estruturas da obra.

Um risco para os bailarinos inexperientes, que se mostram focados na movimentação proposta, mas deixam a desejar na interpretação. Nesse sentido, se a dança for pensada a partir de sua veia interpretativa, e da colaboração fundamental do bailarino na realização completa de uma proposta, a resposta para a primeira questão — de se a obra seria melhor com bailarinos mais experientes —, é positiva. Mas, ainda assim, parece mais fácil notar problemas na característica um pouco vazia da coreografia do que em sua execução ou interpretação. As repetições e alterações dos movimentos não contribuem na possível construção de um entendimento mais linear e de enredo (ainda que não narrativo), que a obra parece tentar transmitir, ficando esse conteúdo mais dependente dos outros elementos estruturais que formam o espetáculo, como o áudio e, sobretudo, a iluminação.

A segunda obra do programa, Fragments, criada em 2003, é um duo retratando um drama de relacionamento — ou, melhor, um drama da impossibilidade de relacionamento. Vemos um casal de personagens que conseguem existir juntas, mas simplesmente não são boas nisso. Novamente, a exploração do junto-e-separado está em foco. Há pouca associação entre os dois bailarinos na coreografia, e quase a totalidade do trabalho centra em mostrar como eles não conseguem estar juntos, em cena, mas, aparentemente, numa metáfora de um relacionamento problemático: o que está fragmentada é a individualidade, em oposição ao desejo ou à tentativa de estarem juntos. Se inicialmente os bailarinos já começam a cena juntos, para depois irem se separando, fica uma impressão de que essa é uma condição a priori, sem um desenvolvimento prévio.

Aqui, a interpretação dos bailarinos encontra, novamente, uma dificuldade nas propostas do coreógrafo. A falta de emotividade no trabalho de Shechter deixa uma compreensão difícil do teor do relacionamento da dupla em cena. Sua preferência pela discussão do social esbarra num limite para comunicar nesse duo, que carece de personagens e de enredo para uma construção mais completa de uma associação entre o público e a proposta. Não encontrando esses elementos, ainda temos a interessante construção do jogo corporal, que pode, em si mesma, sugerir associações, mas tem dificuldades em sustentar entendimentos desenvolvidos.

A última coreografia do programa, Disappearing Act, é creditada como uma criação de 2015, com a menção de ter sido retirada de outra obra do coreógrafo, Under a Rock, feita em 2012 para a portuguesa Companhia Instável, e que foi, na época, curiosamente apresentada precisamente junto das demais coreografias do atual programa de deGeneration, aqui mostrando um exercício de reciclagem artística, com a repetição, três anos depois, do programa, agora recolocado como se fosse uma proposta nova para esse grupo jovem.

A esse ponto, já está claro que repetição é, aqui, um elemento-chave. Todas as características do trabalho de Shechter são reapresentadas e recolocadas, quase idênticas, e, no todo do espetáculo, começam a questionar as possíveis nuances do coreógrafo — e continuamos, sobretudo, vendo outras formas de outra obra sua (talvez sua maior), Uprising, de 2010. Como no todo do espetáculo, permanecem os figurinos simplistas, com ar de ocasionais, ready-made, ou acidentais, ficando trabalhoso entender a existência de uma assinatura ou estilo neles. Novamente, o trabalho com a luz é fundamental, recortando e desenhando espaços no palco. Porém, aqui, parece que estamos vendo um espetáculo de luz que tem um elemento coreográfico, e não uma obra de dança com uma iluminação interessante.

O trabalho com os focos de luz apertados e diminuídos, direcionando a luminosidade angular da cena, dificulta a visualização dos bailarinos e de sua expressividade, mas, talvez, possa contribuir mais para um possível conceito de Disappearing Act, seja ele qual for que se queira encontrar. Também na construção desse conceito abstrato, a maior parte da coreografia se passa em sequências de luminosidade e black-out, quase excessivamente tentando nos mostrar o como as coisas podem desaparecer, mas, novamente, isso é proposto mais pelos efeitos de luz do que pela coreografia. Uma confusão na realização da proposta — e talvez mesmo na concepção da proposta — que se replica no público, que tem uma recepção difícil, sem entender muito bem o que sejam cada uma das coreografias, como elas possam compor um todo, que todo seja esse, e, enfim, que trabalho é esse que se apresenta.

Oferecendo essas chaves de seu trabalho para seus bailarinos mais novos, Shechter se engaja com a experiência dos mesmos em dança. Há uma proposta de variedade, de cobrir um espaço de tempo e de tradição pessoal de movimento e de criação coreográfica que se realiza, mas ao mesmo tempo em que abre outros questionamentos. O trabalho de Shechter, fortemente enraizado nas temáticas sociais e interpessoais, nas dinâmicas de movimento explosivo alternado com micromovimentação, beira o repetitivo.

Enquanto uma de suas peças apresentada num programa misto fica interessante para ser vista e provocar questionamentos, essa seleção de três exemplos do mesmo material se torna um pouco insistente e pouco coesa. E ai, o que seria uma oportunidade de variedade para os bailarinos vira exercício de fuga da mesmice. Um exercício que, talvez, num elenco maduro e com experiência em cena, tivesse nuances interpretativas fortes o suficiente para se sobressair ao padrão das propostas do coreógrafo, mas que, na situação em que é apresentado, nesse programa, acaba degenerando em explorações de mecânica, que da fato revelam grandes potenciais, mas não os realizam tanto.

 

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