Críticas

20 Danseurs Pour le XXe Siècle | Ballet de l’Opéra National de Paris

A temporada 2015/16 do Ballet de l’Opéra National de Paris começa com uma obra inesperada: um protocolo de trabalho de Boris Charmatz que coloca 20 bailarinos espalhados pelo prédio da Opéra, dançando por toda parte — menos no palco — 70 solos e trechos de obras e estilos de dança que marcaram o século XX.

Primeira obra de Boris Charmatz a entrar para o repertório do Ballet de l’Opéra National de Paris, 20 Danseurs Pour le XXe Siècle é um protocolo de trabalho que o coreógrafo e diretor do Centre Chorégraphique National de Rennes et de Bretagne — o Musée de la Danse, desenvolve desde 2012 com seu grupo de bailarinos. O projeto propõe a invenção de formatos coletivos de exposição, em novas escritas museológicas para a dança: reflexões sobre a memória da dança e seu armazenamento — em corpos; e já foi apresentado em múltiplas versões, ocasiões e lugares, entre os quais se destacam os museus MoMA de Nova Iorque, e Tate Modern de Londres.

Pela primeira vez, o protocolo é aplicado a uma companhia de repertório, e, dentro da perspectiva de mudança de Benjamin Millepied — atual diretor do Ballet de l’Opéra National de Paris— para a mais tradicional companhia de dança francesa, ele foi trabalhado por Charmatz com 21 bailarinos do elenco do Opéra, que se voluntariaram para a experiência, abrindo, com essa obra, a temporada 2015/2016 de dança da companhia.

O trabalho em espaços públicos e museus que a obra tem recebido é reaplicado no contexto da Opéra Garnier: os bailarinos estão dispostos e dispersos pelo prédio, retomando a casa da dança francesa e colocando a dança por toda parte — menos no palco. São 13 lugares pelos quais, ao longo das apresentações, o público pode passear à vontade, interagir com os bailarinos, e observar a transformação do prédio de Charles Garnier em uma grande sala de ensaio, um museu-vivo da dança no qual as obras se reconstroem repetidamente nos corpos dos intérpretes.

O elenco é improvável, para os padrões do Opéra: apenas uma Étoile da companhia, dois Primeiros Bailarinos, quatro Sujets, cinco Coryphées, e doze Quadrilles do Corpo de Baile. Uma oportunidade de investigação que não partiu das tradicionais audições e escolhas do coreógrafo e da direção, como de costume na companhia, mas do interesse e disponibilidade do próprio elenco, que trabalhou com o coreógrafo e outros 20 profissionais da dança para estudar, discutir, aprender, assimilar e transmitir, os 70 solos e trechos de obras do século XX que compõem essa exposição.

O espaço que se abre aqui é um espaço de contato com os processos da dança — e não mais com os produtos da dança. Do resultado ao qual temos acesso, foram subtraídos os diversos elementos que preenchem o espetáculo de dança, sobretudo na tradição do Opéra. Desprovidos do palco, da iluminação, do cenário, do figurino, às vezes mesmo da música, e — sobretudo — do efeito de suspensão da realidade que o romantismo criou na dança, encontramos bailarinos, e não personagens. Eles nos apresentam o trabalho, nos contam um pouco da história, e dançam um trecho. São repertórios que fazem parte de seus corpos, que chegaram a seus corpos por outros corpos, e que chegam aos espaços do Palais Garnier para se debaterem com o arroubo visual que naturalmente domina a Opéra.

Do Fauno de Nijinsky (narrado pelo bailarino enquanto ela a dança) à coreografia do musical Cabaret de Bob Fosse (com a música cantada pelo bailarino que a apresenta) na rotunda dos assinantes, para a Morte do Cisne de Fokine no corredor de entrada dos camarotes, do Petruchka de Fokine explicado e dançado na escadaria principal de entrada, ao Serenade de Balanchine no Salão do Sol, da improvisação de Krump no Salão do Glacier à Bayadère de Nureyev no Grand Foyer, da improvisação de Voguing na Loggia ao Buto de Teshigawara na Galerie do Glacier. O percurso é determinado quase que ao acaso pelo espectador, que recebe um mapa dos lugares onde os bailarinos podem se posicionar, mas que só fica sabendo qual a obra ou o estilo que serão dançados quando eles são anunciados, antes e depois de cada apresentação, pelos próprios bailarinos.

Bagouet, Bausch, Bel, Brown, Carlson, Cunningham, Keersmaeker, Duncan, Forsythe, Gert, Graham, Hoyer, de Mille, Nijinska, Robbins, Wigman, também estão no trabalho, entre outros coreógrafos e tipos de dança. Em três horas de passeio e observação, as danças vão se repetindo, a familiaridade com os bailarinos vai aumentando, o público se senta pelo chão, quase participa, fotografa, filma. O grande desafio é de ordem logística — administrar todo o espaço da Opéra, que frequentemente vai ter outra apresentação (na sala) na mesma noite da performance dessa exposição museológica.

Na porta da Opéra Garnier, com uma fila enorme se formando, turistas vem perguntar o que acontece. Eles vieram para as tradicionais visitas e fotografias do Palais Garnier. Os seguranças informam — uma, três, dezenas de vezes — que não, nessa tarde não há visitas à Opéra. Eles estão errados. Quando o público que veio para a obra de Charmatz finalmente entra no prédio, só o que existe é visita. Um ateliê em processo, aberto especialmente para os olhos do público. Uma oportunidade de dessacralizar a Opéra e colocar a plateia no mesmo nível dos bailarinos. De reconhecer esses corpos, e de conhecer — sim, frequentemente pela primeira vez — rostos que costumam ficar escondidos, perdidos nos conjuntos e nas figurações das grandes obras da grande companhia.

Com essa obra, Millepied reafirma intensamente o propósito de sua vinda para a companhia como diretor: o de reaproximar público e dança. Emblemático que ela abra a primeira temporada programada por ele dentro da função de direção. Emblemático também que ele abra espaço a um reconhecido e respeitado coreógrafo francês, que inclusive se formou na escola do Ballet de l’Opéra, mas que nunca antes trabalhou com o grupo. Emblemático que Charmatz retorne à Opéra exatamente no momento em que os colegas de sua época na escola estão se aposentando dos palcos. Um projeto que tem uma visão de futuro e para o futuro, mas que se constrói sobre uma reflexão presente da importância do passado, e de como a história continua. Pelos corredores da Opéra, 20 bailarinos não dançam para o século XX, eles dançam para o futuro, para fazerem parte de uma proposta de mudança da companhia que pode ser questionada, e deve ser constantemente avaliada, mas que coloca em primeiro plano o caráter quase de museu do Ballet de l’Opéra, e a necessidade de que esse museu não seja por demais rígido, e continue vivo, continue dançando.

 

20 Danseurs