Críticas

Devolve 2 horas da Minha Vida | Projeto Mov_oLA

Devolve 2 Horas da Minha Vida, de Alex Soares, coloca em cena uma quantidade assombrosa de questões da nossa vida atual, dominadas pela interação que o público do espetáculo tem com o aplicativo Mov_oLApp, que envia notificações, pedidos, orientações e informações sobre o espetáculo enquanto ele se desenvolve. Das “pausas para selfie” ao uso de projeções e de realidade virtual, a (rara) longa temporada do Mov_oLA no Centro Cultural São Paulo chega ao fim com uma avaliação positiva de seu sucesso enquanto proposta e enquanto realização artística.

A recente criação de Alex Soares para o Projeto Mov_oLA é instigante desde seu título, que seduz independente de todo o conteúdo proposto para a obra. Desse todo, o destaque fica para um aplicativo, feito para ser usado durante o espetáculo, que passou sua primeira temporada no Espaço Missão do Centro Cultural São Paulo, numa sala que inclui, além de uma arquibancada em duas frentes, diversas tomadas e carregadores para celulares, e uma rede wi-fi específica para as apresentações, que são acompanhadas também pelos celulares da plateia, através das notificações e dos múltiplos convites de interação recebidos pelo aplicativo Mov_oLApp.

Apresentado no programa de sala — que não é impresso, mas está incluído como uma das funções do aplicativo — como uma releitura do Janela Indiscreta de Hitchcock, o espetáculo transpõe a janela de observação presente no clássico filme para uma situação atual, delimitada pelas câmeras e telas dos smartphones, numa interessante reflexão sobre a característica cada vez mais determinantemente espetacular e mesmo fetichista da nossa sociedade.

Para lidar com esse tema dentro da obra, o coreógrafo estrutura Devolve 2 horas a partir de um sentimento constante de participação e interação. Antes de entrarmos na sala já começamos a receber as notificações pelo aplicativo, que se colocam quase como um pré-anúncio de sala. O anúncio de fato também ganha espaço na brilhante interação do elenco com as projeções em uma tela ao fundo da cena, e abandona a informação da localização das saídas de emergência para pontuar a presença das tomadas e carregadores disponíveis “em caso de emergência”. Essa mesma tela é usada ao longo do espetáculo para valorizar questões de interação, com projeções que ganham vida através do uso de iluminação pontual e de movimentação perfeitamente consistente com o movimento das imagens projetadas, que cavam camadas de percepção do espaço, da realidade, e da realidade virtual, que se encaixam com o desenvolvimento proposto para a obra.

Os três atos de Devolve 2 Horas são separados por duas Pausas Para Selfies, que não são pausas de fato, mas cenas em que duplas de bailarinos se movimentam a partir de estruturas de posicionamento e manipulação corporal, como se estivessem se fotografando em situações que vão do corriqueiro ao esdrúxulo. A manipulação corporal, junto com estruturas de sustentação conjunta, também é foco de um duo do segundo ato da obra, um dos destaques entre os múltiplos pontos de sucesso do trabalho, e que vai se direcionando como uma briga, interrompida por um telefonema, em que um dos bailarinos avisa ao coreógrafo que a cena ficou um pouco tensa, momento em que o app nos oferece um blackout. O blackout não se dá fisicamente na cena, apenas nos nossos celulares, como se fosse uma proposta de uma escolha pessoal de olhar para a tela e não para o que é apresentado. O que ele apagaria? Uma perseguição, que passa depressa do sexual ao predatório, com roupas sendo arrancadas ao som de sirenes e um pedido constante para que o público tire uma foto do que está acontecendo. Esse pedido rapidamente passa da evidência de um crime para um registro pessoal, “uma foto minha, com o cabelo assim, mas sem você aparecer”.

A intensa movimentação proposta pelo coreógrafo curiosamente fica entre o hiper-dinâmico e o contido: movimentos grandes, expansivos, são colados a acentos para dentro, a dinâmicas de tensões, que parecem prender os bailarinos dentro de um espaço que, de certa forma, é dentro de si mesmos. Somos tomados por múltiplas questões, tanto expressas quanto lidas nas entrelinhas, que discutem desde os limites da privacidade, até algo com um tom existencial, como qual é o seu lugar, e como o seu lugar conta a sua história. O espaço cênico, além da tela, da percepção da platéia, da estrutura física do espaço do Centro Cultural, inclui uma planta desenhada em branco pelo chão sobre o linóleo. Se no começo do espetáculo reconhecemos cômodos, entradas e saídas de uma casa, conforme o espetáculo prossegue, perdemos a noção do espaço, apagado pelos intensos movimentos dos bailarinos junto ao chão, e que transforma a cena, antes decifrável e identificável, em um espaço neutro e incerto, causando um estranho apagamento do próprio lugar em que estamos.

A ideia de lugar e de pertencimento parece fundamental para Devolve 2 Horas, que apresenta uma sutil e descontínua estrutura narrativa aportada por falas dos bailarinos, que contam suas histórias. Porém, constantemente permanece a dúvida de se eles estariam personificando objetos ou objetificando sua pessoalidade. Ambos os processos parecem legítimos dentro dessa construção tecnológica, e dessa reflexão sobre a nossa associação e quase dependência das tecnologias que nos cercam. Há uma situação limite no terceiro ato, em que a plateia é convidada a usar os celulares dentro de óculos, experimentando um video de realidade virtual aumentada e em 360º que de certa forma tira deles a capacidade de assistir à cena conforme ela prossegue.

Enquanto os bailarinos recebem as pessoas da plateia, preparam seus celulares para os óculos e as colocam no meio da cena, aqueles que permanecem sentados assistem a uma outra cena: o movimento dos próprios espectadores colocados sobre o palco, e a dinâmica dos bailarinos com eles, que se constrói entre o organizá-los no espaço e o usá-los como estruturas cênicas e props, atrás das quais se escondem. Dado momento, todos os bailarinos saem da cena, subindo para o mezanino do espaço, onde tiram uma selfie com o público de óculos ao longe, sobre a cena.

O espetáculo se encerra com as luzes se acendendo e uma mensagem de que podemos mandar aplausos assistindo a um video de aplausos, encontrável através de um QR Code, estampado em um dos manequins da obra. O aplicativo agradece nossa presença, e informa que as muitas fotos que foram tiradas através dele (inclusive a partir dos pedidos feitos em cena) não foram salvas em nossos celulares. Um questionamento final, de como constantemente nos ocupamos em registrar certos eventos e perdemos a oportunidade de aproveitar e de viver esses mesmos eventos.

Como diversos outros trabalhos de Alex Soares, Devolve 2 Horas da Minha Vida acerta em cheio o alvo de seu assunto e de seu desenvolvimento, e cria situações que são valiosas tanto pela sua construção artística quanto por sua eficiência enquanto temas relacionáveis para o público. A qualidade e capacidade do elenco, junto de um time de artistas e técnicos admirável produz uma obra que pede para ser vista e revista. Dentro dessa questão, é interessante a estratégia do Mov_oLA, de fazer uma temporada de um mês dentro do Centro Cultural São Paulo, que começou no CCSP Semanas de Dança 2016 e segue até o primeiro final de semana de novembro. Rever Devolve 2 Horas um mês depois de sua estréia nos traz a afirmação da efetividade da proposta, com plateias que continuam lotadas, que estão ainda mais integradas com a estrutura, o desenvolvimento, e a participatividade propostas pelo espetáculo, e que nos deixam com a deliciosa sensação de continuidade — muito rara tanto em aspectos da vida cotidiana, como os que são retratados pela obra, quanto nos atuais esquemas de produção e circulação de obras dança, em que dois finais de semana já seriam considerados uma temporada longa e de excessão, frente às constantes apresentações pouco repetidas a que nos acostumamos.

Dessa forma, o grupo consegue dialogar com uma quantidade perigosamente grande de tópicos contemporâneos, e, surpreendentemente, esse risco em nenhum momento resulta em catástrofe. O excesso de informação simultânea é uma característica inseparável de nosso atual modo de vida e de articulação. De certa forma, queremos ainda outros excessos. Ainda mais notificações durante o espetáculo, ainda mais formas de interação, ainda mais pausas para selfies, ainda mais tempo de cena. O grande sucesso do Projeto Mov_oLAcom esse espetáculo é que em nenhum momento precisemos pedir menos,  que em nenhum momento precisemos pedir de volta qualquer tempo que seja que ocupamos com a obra.

 

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