Críticas

Quebrakovsky – The Nuts Talent Show | Balé da Cidade de São Paulo

O Balé da Cidade de São Paulo se aventura por águas perigosas, numa obra inspirada em uma das maiores tradições do ballet: O Quebra Nozes. Transformado em uma discussão meio contemporânea, meio biográfica e meio show de talentos, Quebrakovsky mira em muitos alvos, mas acerta poucos. A versão de Alex Soares para o grande clássico natalino do ballet é crítica nova no Da Quarta Parede.

O Balé da Cidade de São Paulo encerra a temporada de 2016 com uma nova criação de Alex Soares para a companhia: Quebrakovsky – The Nuts Talent Show, uma obra inspirada pelo clássico natalino O Quebra Nozes, tradicionalmente presente em diversas culturas pelo mundo afora. São Paulo não estava fora desse percurso, contando com a montagem regular da Cisne Negro Cia de Dança, que chega à sua 33ª edição nesse ano. Porém, o Quebrakovsky do BCSP não se insere nessa longa tradição, propondo uma releitura contemporânea, alimentada por dados da biografia do compositor do ballet original.

Não se trata aqui de adaptar nem propostas nem enredo, mas de discutir questões da própria obra e de seu histórico. Por exemplo, o observado distanciamento entre o primeiro e o segundo atos do Quebra Nozes é pontuado enquanto um elemento cultural que remete ao subtítulo da nova obra: um show de talentos, nos moldes dos programas atuais que tentam descobrir novos cantores, bailarinos, e artistas em geral, através de apresentações que ocupam o mesmo espaço, mas que se sucedem sem uma lógica ou uma sequência de encaminhamento.

Esse grande divertissement, já característico do primeiro Quebra Nozes, corresponde a um momento da história de natal contada pela obra. Brevemente, na noite de natal vemos Clara ganhar um boneco quebra nozes que acaba sendo quebrado por seu irmão; e como que num sonho, Clara vê seu padrinho, o mágico Drosselmeyer consertar o seu boneco, revelando que ele na verdade era um príncipe enfeitiçado, e Clara e o Príncipe, passando pelo reino das neves, viajam para o reino dos doces, onde são recebidos pela Fada Açucarada. É no Reino dos Doces que os dois acompanham diversas danças em sua homenagem, finalmente voltando para o mundo real, onde tudo o que Clara tem é o seu brinquedo.

Um conto de sonhos, baseado na história — até sombria — de E. T. A. Hoffman, trabalhado frequentemente como uma história da descoberta do primeiro amor, e que seria montado pelo BCSP em uma versão Suite, que foi substituída por uma reorganização intensa das cenas de Tchaikovsky por um trabalho conjunto do coreógrafo e do diretor musical Eduardo Strausser. A dupla identifica múltiplas questões no desenvolvimento da composição por Tchaikovsky e se aproveita das possibilidades de sua reestruturação, também se alimentando de uma grande carga biográfica acerca do compositor, transformado, inclusive, em personagem e colocado em cena.

Na produção do BCSP vemos diversos dos gostos de Alex Soares, como o uso explícito da tecnologia, quando, por exemplo, Drosselmeyer usa o Google, através de uma projeção sobre o palco, para trazer Tchaikovsky para a cena. Projeções também são usadas algumas vezes para apresentar as personagens, no que parece uma tentativa de suprimir a necessidade do Libreto: a versão escrita do enredo era parte fundamental da apreciação de um ballet. Porém, essa tentativa não da conta daquilo a que se propõe.

Apesar da inclusão de Tchaikovsky e de outros personagens em cena, esses personagens parecem gratuitos, sem um motivo para ali estarem, sem um desenvolvimento que os amarre na história contada. Se por um lado a versão do BCSP identifica negativamente a característica desencaixada da apresentação dos conteúdos do Quebra Nozes clássico, a versão que nos entregam não chega a resolver esse problema, e apenas o aponta em outros elementos.

Há uma transposição da história para o tempo atual, não só no segundo ato, transformado no show de talentos, mas também em cenas do primeiro ato, em que vemos um jantar de família em que as pessoas estão ocupadas demais com o seus próprios celulares para que haja interação entre os indivíduos. Os ratos também são replicados numa analogia a uma multidão de engravatados — um tema pertinente a São Paulo, mas talvez especialmente por isso já repetido à exaustão nas obras do BCSP.

A cena do Reino das Neves, montada e remontada por companhias do mundo todo é uma das boas ilustrações das propostas de movimentação usadas por Soares nesse Quebrakovsky, se apresentando numa estrutura de palco de show, com o uso de aparatos elásticos para permitir que alguns solistas/ acrobatas flutuem pela cena, e  inclui múltiplas formas de corporeidades ligadas às danças urbanas, às artes marciais, e a movimentos de lutas.

No segundo ato, Clara se transforma em algo como a estrela, ou a jurada, do show de talentos que se monta num palco armado sobre o próprio palco, e nesse show se apresentam bailarinos, mas também figuras como equilibristas e lutadores de sumô. A variação da Fada Açucarada é transformada numa batalha com duas bailarinas, uma na ponta e outra descalça, numa construção interessante que fazem pensar na movimentação — e até mesmo na técnica corporal pessoal — de Sylvie Guillem. E a valsa final, que tradicionalmente seria uma despedida do Reino dos Doces, é transformada numa apoteose do show de talentos, na qual o palco sobre o palco se desmonta, e embaixo dele encontramos Clara, que será guiada por Drosselmeyer de volta ao seu príncipe, com quem ela dança o que seria originalmente o adágio e a Coda do Pas de Deux da Fada Açucarada, que é lindo, mas faz pouquíssimo sentido.

Confuso? Com certeza. Mais uma vez, o programa de sala (que esse ano deixou de ser distribuído e passou a ser vendido — e por muito mais do que ele vale de fato, diga-se de passagem), ainda que seja superior aos programas das temporadas anteriores — incluindo texto de uma pesquisadora e entrevista com os realizadores da obra —, nos ajuda muito pouco na compreensão, parecendo focar naquilo que veríamos num Quebra Nozes tradicional, o que este não é.

Em uma obra que já tem tantos elementos, como é o caso desse ballet, adicionar ainda outros é algo complexo e que nem sempre traz um retorno satisfatório. Durante parte da obra, eu achava que o Quebra Nozes era o irmão de Clara. De fato, não me lembro nem da existência de um quebra nozes, propriamente, apenas do príncipe. Mais que isso, a obra começa, continua e termina sem que saibamos o que exatamente Tchaikovsky foi fazer ali, ou por que precisaríamos da presença em cena de sua esposa, Antonina Miliukova, ou de seu sobrinho, Bob Davidov, com quem Tchaikovsky trocara em vida cartas românticas.

Sim, ainda mais confuso. Na tentativa de incluir no Quebra Nozes esses aspectos biográficos do compositor, com pouca explicação e desenvolvimento, o BCSP chega apenas ao título da obra: Quebrakovsky. Sua realização, enfim, não é amplamente alcançada. Em si, isso é uma pena, porque são anos desde que a companhia se debruçou sobre uma obra clássica para repensá-la, a última delas, o Giselle de Luiz Fernando Bongiovanni, apesar de muito brilhantismo e bom desenvolvimento, foi deixado de lado após meras duas apresentações em 2011. Se por um lado parece uma pena que o mesmo destino incorra ao Quebrakovsky, é difícil imaginar como poderia ser de outro jeito.

Talvez, no desespero por fugir do Quebra Nozes original, algo tenha se perdido no meio do caminho. E não há justificativa para isso nem na resposta de que o ballet original não tem um fio tão claro, como defendido pelos artistas no programa — e essa consideração é algo que pode ser questionado: há interessantes leituras possíveis da passagem do mundo real para o Reino dos Doces como uma analogia de uma efetiva entrada na árvore de natal, coberta por neve e por doces, como era então a decoração de costume; além disso, dentro do tema natalino, discutir presentes, discutir comida, discutir relações familiares parece algo completamente pertinente.

Possivelmente, o que mais parece faltar no Quebrakovsky é o natal. E ai, fica difícil entender a sua colocação no fim do ano, bem como a discussão dos shows de talento (que costumam ser competições de começo e de meio de ano, e não tanto de fim de ano, na verdade). Talvez, essa mesma equipe fizesse uma Suite Quebra Nozes brilhante — não há dúvida dos talentos já provados dos envolvidos. Mas não se pode evitar o fato de que quando anunciamos um Quebra Nozes (e, importante lembrar, os ingressos foram vendidos como “Suite Quebra Nozes” desde o começo do ano — o título tendo sido mudado ao longo dos trabalhos), há uma expectativa, que reporta a uma das maiores tradições da dança clássica: mais emblemático que o Quebra Nozes, apenas O Lago dos Cisnes. E por mais provocante que o resultado do Quebrakovsky do BCSP tenha sido, as expectativas não foram atendidas.

img_0543