Críticas

Carta ao Pai | Cia Carne Agonizante

Um universo magoado e de repressão é retratado pela carta, nunca entregue, que Kafka escreveu a seu pai, e que serve de inspiração para a criação de “Carta ao Pai” da Cia Carne Agonizante.

Obra de 2006 de Sandro Borelli, “Carta Ao Pai” se inspira em uma carta de 103 páginas que Kafka escreveu em 1919 para seu pai, discutindo a relação abusiva entre eles e o comportamento hipócrita do pai. Sem nunca ter coragem de lhe entregar o texto, a carta foi publicada como obra literária nos anos 1950, e permanece como um registro da relação dos dois, e das dificuldades emocionais sentidas pelo autor.

É nesse universo que a Cia Carne Agonizante mergulha para uma criação coreográfica que reproduz a angústia, a carência e a mágoa de uma relação familiar psicologicamente brutal e falida. Num palco quase vazio, uma poltrona, onde se instalará a figura de terno e chapéu do pai. Sua presença, sempre muito contida, será o tempo todo determinante para o desenvolvimento das cenas.

Ele usa as mãos sutilmente, como se desse comandos que precisam ser (e que serão) seguidos, mas que não precisam ser gritados. Sua força é repressora, castradora, e faz alternarem-se as posições dos filhos. Em dinâmicas de aproximação e afastamento, manipulam-se mãos, cabeças, todo o corpo: tocando-os, ou de longe, sentado na poltrona, o pai molda seus filhos.

Num retrato de infância, a trilha sonora lembra uma caixa de músicas, misturada a uma respiração pesada e ruídos distantes de crianças. Instaura-se o tempo da memória. A movimentação se organiza pelo apoiar-se, pelo sustentar-se um no outro. Da poltrona, o pai comanda o grupo de cinco bailarinos, que se movimenta uniformemente — ora em conjunto completo, ora em grupos menores — no que parece ser uma brincadeira, mas sem alegria: extremamente regrada, a preocupação desse jogo não é a diversão, mas agradar o pai. Mantém-se o tom de infância entre os filhos, mas sem que haja leveza e despreocupação, numa construção calcada na crueza, característica tanto do autor, como do coreógrafo, que conversam bem. Ali, se instaura uma melancolia do comando: uma coreografia de apontar, de demandar, de governar sem esforço aparente, apenas pela presença insistente dessa figura dominante.

O estado corporal da obra é constante: o pai é pesado, sóbrio, faz o mínimo de movimento possível; os filhos são contínuos, numa sequência sempre ralentada sobre a qual não há progressão, sobre a qual não se agrega estímulo ou velocidade. Mesmo o estímulo corporal é castrado, também na narrativa que se desenrola. Um dos filhos parece se masturbar, o pai desaprova, e coloca, como que num castigo, os outros filhos sobre ele. Mas nenhuma expressão se altera — o castigo e o controle são esperados, naturalizados, aceitos calados.

Voltarão ao tom de brincadeira? A esse ponto da obra, já parece preciso questionar se era mesmo esse o tom do início do espetáculo. O caráter sombrio e sóbrio progressivamente coloca em cheque as primeiras impressões — e essa é a forma inteligente como a obra lida com o aspecto da memória, da recordação, presentes na estrutura de carta do texto de origem: articulamos o passado não necessariamente a partir de seus fatos, mas a partir de suas lembranças, de suas construções mentais e psicológicas. Pela memória, os ocorridos ganham novas cores, novas sombras, e o indivíduo participa ativamente de uma (re-)construção de seu passado.

Finalmente, um dos filhos parece desafiar o pai, numa torrente — um pouco mais viva — de movimentos, que termina com o pai colocando os óculos, ao mesmo tempo em que os filhos cobrem os olhos. Ver e se esconder são partes fundamentais dessa relação obscura, magoada, relembrada com melancolia numa carta que nunca foi entregue, nunca foi lida por seu destinatário. A própria metáfora da carta ignorada parece surgir em cena, com o pai desfolhando um maço de páginas pretas, que caem pelo chão. De terno, um dos filhos volta e acaba a leitura do texto. O filho se despe, o pai tira o terno, e eles caminham, um agachado e o outro em pé.

Tudo foi feito e nada mudou. Um universo fechado, reprimido, contido. Com um arroubo de rebelião, mas que é mudo, porque não é ouvido, porque não se faz ouvir. Explorando um universo sem saída, Borelli faz da mágoa um estado corporal e, mais que isso, uma proposta de movimento, que acerta e atinge seu público por não precisar ser explicada, sendo sentida intimamente através do retrato pintado em cena. E só assim, na publicação ou na encenação, a carta se entrega, e essa história é contada.

 

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