Críticas

Kuarup | Ballet Stagium

“Kuarup” é uma obra de luto, que há 40 anos nos grita para olharmos para os perigos da dominação e dos projetos de controle. Os índios-operários de Décio Otero continuam hoje tão atuais quanto em 1977, e voltam para o palco do Teatro Municipal de São Paulo, onde o Stagium reapresenta essa coreografia que é um mito fundador — de nosso povo e de nossa dança.

40 anos não passaram para “Kuarup”. A obra de Décio Otero e Marika Gidali para o Ballet Stagium, aclamada e reconhecida em mais fontes do que é possível citar, continua hoje tão atual quanto em sua estreia, como símbolo da repressão, da resistência, e da força, violenta, que foi e continua sendo aplicada sobre povos, credos, grupos, e identidades.

O lado positivo é que a obra não precisa de nenhuma atualização, nenhum retoque, nenhuma explicação. O lado negativo é social: o que deixamos de fazer nos últimos 40 anos que faz com que essa obra continue tão atual?

A questão dos índios brasileiros, dizimados em sua terra, é transposta para o palco, inicialmente, com os bailarinos em macacões de operários — verde para os homens, amarelo para as mulheres —, junte-se a trilha sonora dos índios do Xingu, e não precisamos de mais nada. Sabemos quem são eles, sabemos qual a sua luta, e sabemos o triste resultado dela.

A coreografia de Otero é simples, não tem nem realizações especialmente complexas, nem apegos a maneirismos de estilo ou de época. Pode ser dançada por quase qualquer um, e pode ser apresentada em quase qualquer lugar. Isso é parte do trunfo que faz dessa uma de nossas obras de maior circulação.

Seu título é o nome de um ritual dos índios do Xingu, que celebra a passagem e a despedida dos mortos, e não poderia ser mais emblemático: a cena, que começa com a leveza da brincadeira e do convívio pacífico, é transformada pela chegada dos colonizadores, representados apenas por um direcionamento de luz. Frente a eles, o desespero desses índios-operários se traduz em mãos batendo no chão: é só isso o que eles podem fazer. Na cena final, despidos dos macacões e com trajes indígenas, os bailarinos caminham do fundo à frente do palco, como fizeram outras vezes. Porém, agora vão caindo pelo chão. E o palco se torna vermelho, coberto do sangue derramado sobre a terra.

A reflexão é inevitável: foram dizimados. E continuam sendo, da mesma forma que tantos outros foram, eram, e ainda são perseguidos. “Kuarup” não tem nenhuma preocupação em dar esperanças, nenhuma intenção de reconfortar. Somos testemunhas indiretas de um massacre, e não fazemos nada sobre isso.

A obra arrepia, leva lágrimas aos olhos, arranca aplausos contínuos e intensos, que reconhecem o lugar e a pertinência de uma questão triste, e de seus desdobramentos, dos quais frequentemente preferimos desviar o olhar. Ali, em cena, vemos em poucos minutos o desdobrar do mito fundador da nossa história e da nossa identidade. E ele não é sacrificial — ele é cruel, de extermínio e dominação.

A comparação de “Kuarup” com “A Sagração da Primavera” foi insistente. Mas, ainda que a “Sagração” retrate dor e morte, seus propósitos são sociais — uma morre para que a primavera renasça para todos os outros. “Kuarup” é mais pesado, porque sua violência não tem esse fim. Eles são mortos, porque vivos não contribuem a um projeto que não era o deles, que não os leva em conta, e que não os ajuda de nenhuma forma. Eles são mortos porque sua existência atrapalha um outro, maior e mais forte, e seus planos.

A comparação com “Sagração” é verdadeira no tom da grandiosidade. “Sagração” marcou época, definiu caminhos para a dança. “Kuarup” também. Se tivéssemos prestado mais atenção a sua mensagem, talvez não reconhecêssemos, 40 anos depois, os mesmos problemas e os mesmos exercícios de força, e então a obra soaria ultrapassada, como uma lembrança de outra época.

Mas “Kuarup” não é de outra época, porque não resolvemos, nem aprendemos a reconhecer e a lidar com os problemas que ela retrata. “Kuarup” é de agora. E precisa estar onde está, no palco do Theatro Municipal de São Paulo — inclusive por muito mais tempo do que os breves dois dias dessa comemoração.

A ocasião tem, sim, seu lado celebrativo — porque mostra gerações de bailarinos que passaram pela obra, se aproxima de tantos dos nomes da nossa dança, e reconhece o lugar, inegável, do Stagium em nossa história —, mas também tem um lado ainda mais forte de sombra, de luto, pelos efeitos de um projeto de poder que começou em nossas raízes, continuava tão forte no meio da ditadura, quando a obra estreou, e que permanece ameaçador.

Cantemos e dancemos os nossos mortos, os nossos oprimidos, os nossos esquecidos, os nossos caídos. Mas que essas quedas não sejam em vão. Esse é o recado que, então, em 1977, “Kuarup” bradava, e que hoje continua, a plenos pulmões, gritando. Do contrário, apenas bateremos as mãos no chão, esperando o fim vermelho, e as décadas que passam.

 

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