Claudio Bernardo deixou o Brasil em 1986, foi estudar na Mudra, escola de Maurice Béjart, na Bélgica, e eventualmente tomou o país como casa. Lá, fundou sua companhia, As Palavras, que, em sua comemoração de 20 anos, olhou para trás, para seu percurso pessoal e profissional, num solo celebrativo.
Uma forma de autobiografia epistolar sentimental, parte de uma carta recebida por Bernardo ao deixar o Brasil, e de outras tantas — entre as quais se reconhecem Kafka, Pasolini e Rilke — para desmembrar as partes de uma colcha de retalhos que o compõem.
Esses retalhos são transformados em cenário, e espalhados pelo chão, inicialmente cobrindo toda a cena e, pouco a pouco, sendo removidos pelo bailarino, revelando o palco nu, como lugar de memória, e suas coberturas — por vezes bagunçadas — que escondem e revelam as camadas do passado.
Para acessar esse passado, Bernardo se torna um contador de histórias (próprias), misturando o francês e o português — como sua própria vida — e aqui entra seu principal diferencial: o timbre de sua voz, lhe dá a qualidade rara de um bailarino que além de se ver, se quer ouvir. As mensagens não são apenas bem construídas, mas são deliciosamente transmitidas, nesse solo que é longo, mas é tão agradável que não parece ser.
Entre verdades pessoais, memórias de infância e de carreira, de seus pais dançando na sala até instantes notáveis de suas obras, o bailarino se questiona — e nos questiona — o que é um coreógrafo, o que é coreografia. Explica a metáfora da foto, tida como uma verdade, e do vídeo, enquanto sequência de fotogramas, múltiplas verdades por segundo. Nessa noção, ele nos coloca a dança como uma forma de verdade estendida, prolongada, contínua, sem interrupções.
Assim, os 20 anos da companhia passam em revista. Com o auxílio de projeções, percebemos as marcas e a passagem do tempo. Aquele tanto de coisa que muda, enquanto tanto mais permanece inalterado, entre a carta afetuosa de sua amiga, que nos fala de companheirismo, de amor e de distância, e as outras cartas — talvez menos afetuosas, inclusive — e que se debruçam sobre temas mais próximos à família.
De volta a Fortaleza para dançar sua história, o que encontramos é um momento de homenagem e de acolhimento, em uma investigação sobre deixar um lugar e querer se fazer em outro, e criar e continuar. Os marcos desse caminho, as coisas que precisam ficar pra trás, e as tantas outras que encontramos.
Por quanto tempo? Se nada continua para sempre, e trabalhos de natureza celebrativa / memorial focam as questões da passagem, é necessário pensar quanto tempo duram as coisas. Ainda que não tenhamos respostas claras, só instantes, como que fotografias. Verdades, sim, mas temporárias, passageiras. Que espelham a vida, e se ilustram na carta que inspira a obra, que termina nos falando da idade de sua autora, então refletindo sobre Bernardo, que tinha só 20 anos quando deixou o Brasil.
Daí vem o título, refletindo não só o tempo das pessoas, mas o tempo das instituições, reflexão especialmente importante na ocasião do aniversário da companhia, que, quando a obra foi criada, comemorava “só” vinte anos. Que também é tempo demais. É o tempo de toda uma vida, e, por isso, arriscaria soar como retrospectiva, mas escapa dessa armadilha. Os 20 da carta foram a mais tempo, e ouvida agora, seu tom não é passadista, mas de prospecção, fazendo pensar no que vem depois desses só 20, e de outros 20 tantos, reconhecendo a efeméride, mas sem transformá-la em epitáfio.
Da mesma forma, é a qualidade do trabalho, e não seu aspecto de volta pra casa, que mais depõe a seu favor. Toca por ser sincero, funciona por não precisar disfarçar nem lembranças, nem emoções. E emociona por reunir, num instante, o “pouco” e o “tanto” de só 20 anos.