Críticas

Uma prece pelo futuro

Em “O Jardim das Delícias”, Marie Chouinard nos mostra uma visão esperançosa do mundo, a partir da emblemática pintura de Bosch.

Partindo do reconhecido “Jardim das Delícias” de Hyeronimus Bosch, a coreógrafa Marie Chouinard faz uma homenagem na ocasião dos 500 anos da morte do mestre holandês da pintura renascentista. O procedimento adotado pela coreógrafa canadense divide sua obra em três momentos, partindo, para cada um deles, de cada um dos painéis internos do tríptico, mas a escolha de sua ordem parece completamente consciente com uma possibilidade de interpretação e de mensagem que podemos ver nessa obra.

A obra de Chouinard é contínua, mas dividida em três atos, com pequenas pausas técnicas entre eles. A cada ato, ela explora não apenas um dos painéis do tríptico, mas procedimentos distintos de composição. No primeiro deles, sobre o quadro central, ela trabalha a partir das figuras, motivos e personagens das cenas do quadro, que ganham movimento e dimensão ao serem trazidas para o palco e para os corpos dos intérpretes.

Em projeção, a pintura de Bosch ocupa todo o fundo da cena; completam o cenário dois “olhos”: telões circulares, spots de projeção, que permitem um recorte do detalhe da pintura que é desenvolvido a cada passagem. Aqui, fica um um tanto de dificuldade na indicação expressa daquilo que se vê, porque a obra por um lado permite um exame detalhado do quadro que referencia, mas por outro se fecha no representativo ou ilustrativo.

O sucesso desse momento é o conseguir escapar da mera reprodução: enquanto as figuras, os gestos e posições vêm diretamente do quadro, o trabalho coreográfico é o de transformá-los em dança. Essa é a etapa que exige a criação e a criatividade da artista, que se aproveita do fato de que o quadro de Bosch é naturalmente dinâmico: mesmo que pela simples quantidade assombrosa de conteúdo, ele nos leva a navegar por essa paisagem, aqui trabalhada em surrealismo coreográfico.

Tal proposta é trabalhosa, porque o corpo não é capaz de se desfazer em cena, e, no entanto, frequentemente é essa a impressão que a coreógrafa traduz. Acostumada a lidar com acessórios cênicos, nesse momento, o principal material de trabalho é o corpo em movimento, parcialmente desnudado, e transmutando-se através do movimento. Isso se dá em parte por uma necessidade imposta: figurino quase inexistente e nos levando diretamente à pele contrastam com a dimensão das cores e intensidades da pintura. Estas, precisam ser traduzidas unicamente pelo movimento. E assim acontece a mágica. Independentemente de podermos fazer as comparações — com o quadro ao fundo ou com os detalhes nos destaques — é a dinâmica de uma pintura obsessiva, cumulativa, e de conteúdo diverso e denso que se destaca na proposta encenada.

Quando passamos ao segundo ato, o Inferno, representando o painel da ponta direita do tríptico, o que encontramos é uma instalação, a princípio cenográfica e posteriormente também de movimentos, com a projeção nos spots passeando por detalhes do quadro, como se fossem lupas a magnificar as figuras.

Do despojado ao brincalhão, vamos ao grotesco, sutilmente sombrio e ameaçador. Essa não é uma dança de conforto, mas também essa pintura já foi interpretada como apocalíptica: um dos entendimentos é que os abusos do Jardim das Delícias do painél central levem à esse momento sombrio e temível.

Há mais vestimentas e mais cobertura do corpo, e impera um frenesi generalizado, um barulho intenso que não tem mais nada da leveza festiva do ato anterior, misturando dor, desespero, confusão e loucura. Aqui vamos ver bem destacada a exploração protética do corpo que tem sido uma das assinaturas de Chouinard, entre extensões e aparatos que escondem o corpo, transformam e deformam-no.

No meio do caos, um anjo caído grita sobre a trilha sonora desse espaço de perdição, para encerrar o segundo ato. Aqui vem a escolha de maior impacto, e que mais dirige a interpretação que percebemos da coreógrafa: ela lê e apresenta o tríptico começando pelo meio, depois indo ao terceiro painel, e só então voltando ao Paraíso do primeiro.

Todo tipo de inversão é observado como significativo. Mas não se trata na verdade de uma nova leitura da pintura: sua estrutura é dobrável, e funciona como um oratório. Fechado, ele mostra a Terra, em meio à criação, mas ainda antes dos humanos. É ao se abrir, pelo meio, que ele nos revela os três paineis. O central, logicamente do dobro do tamanho dos outros, é o que atrai mais atenção, por isso um ponto de partida compreensível. Mas partir dele para o Inferno, e depois voltar ao paraíso parece uma sugestão de uma perspectiva mais positiva e menos apocalíptica.

Se uma das leituras tradicionais para a pintura é a observação da destruição da Terra pelos homens e seus excessos, essa nova organização, que inclusive começa e termina com a projeção abrindo e fechando o oratório, já passa a nos sugerir o cíclico, o contínuo. Quando chegamos ao Paraíso na obra de Chouinard, então, já passamos pelos excessos e pela destruição. Não mais um Inferno de eterna danação, mas talvez um purgatório, que nos leva e esse novo momento de calma.

Aqui, as projeções nos spots de destaque não revelam mais detalhes da obra, mas dois olhos, que nos observam enquanto vigiam esse paraíso. O mais simples dos paineis, carrega a leveza do momento final da criação. A paz dos animais espalhados pela cena, os dois primeiros humanos, e, coberta de manto, a figura da divindade da criação.

Na versão de Chouinard, podemos explorar um pouco mais de sua leitura da obra, que parece nos tirar do que seria de se esperar da situação do Inferno realizado, devolvendo a expectativa e esperança de um novo paraíso. Ela multiplica os humanos e divindade, passa mantos entre vários deles, duplica e triplica a cena da criação. Altera mortal e divino, e nos dá um novo entendimento do papel humano nesse momento: não a passividade da criação, mas a responsabilidade de fazer parte dela.

No todo, o ato é pouco dançado, mas ele depende cabalmente de um trabalho corporal enorme e de qualidades de movimento que se ocupam com traduzir e transformar a cena — a única que mesmo na pintura já poderia ser vista como estática. Ao final, vemos a projeção do fundo se ampliando, e os bailarinos, grudados à tela, passam a se fundir e se perder em sua natureza, reforçando o caminho cíclico que é assinado com o oratório se fechando.

A obra é de 2016, e sua leitura não poderia ser mais do momento atual, questionando quais os nossos atos e qual a nossa participação em cada aspecto daquilo que está por vir. A organização, terminando com o paraíso e insistindo no cíclico de um oratório que guarda o universo e sua história, rompe um tanto com a linearidade cristã — da criação ao apocalipse e à vida eterna —, e nos dá uma nova chance, ainda na Terra, mesmo depois do que parece seu fim: uma prece pelo futuro.