A lembrança e o presente no palco
Na programação do ETÉ – Festival do Corpo, o Ballet Stagium volta ao palco do Theatro Municipal de São Paulo.
Existe algo sempre especial em ver o Stagium no palco do Municipal. Não é uma questão de pompa — o Stagium faz (e fez) bonito dançando por toda parte, e em todo tipo de palco, de grandes teatros às praças. Mas há uma questão quase inevitável da magnitude: o Municipal é imenso (e nem se trata de uma questão de espaço, mas de representatividade), e o Stagium é uma das poucas companhias grandes o bastante para essa imensidão.
Num programa duplo, entremeado e com participação dos Barbatuques, o Stagium dançou no ETÉ – Festival do Corpo, que reuniu manifestações diversas das artes corporais. Duas obras de Otero foram à cena, “Sonhos Vividos” (2019) e “Batucada” (1980).
“Sonhos Vividos”, que estreou mais cedo este ano, é a segunda obra da companhia a se inspirar em Elis Regina. A anterior, “Que Saudades de Elis” é de 1988, seis anos após a morte da cantora, que também foi aluna no Stagium. Era uma época precária para a companhia, traduzida em figurinos simples de roupas do dia a dia, e em cenários ausentes, minimalistas, e de poucos recursos. E já parece que descrevemos a obra atual.
Nesse sentido, é interessante que “Sonhos” começa com uma procissão circular, ao som de “Romaria”, incluindo passagens de joelhos e gestos que remetem a uma religiosidade, ainda que não exatamente à prece. Trata-se de esperança, de expectativa. Um desejo pelo futuro, que é constantemente um olhar para o passado.
Dai a predominância do tom de memória, de saudades, de lembrança, que aparece numa coreografia organizada em quadros, ditados pelas músicas da trilha, mesclando uma quantidade de duos românticos e de cenas em grupo, que refletem esse aspecto social da memória.
A proposta ilustra bem o movimento do coreógrafo Décio Otero: um estilo de coreografia do gesto, não como pantomima, mas a partir da pose, de onde se nota sua influência do balé, por ele reinventado em um complexo sistema que cria a ordem dentro de um caos de referências múltiplas do moderno — sob o qual tantos outros sucumbiram.
Para além de seu estilo coreográfico, fica claro o estilo composicional da companhia, e da direção de Marika Gidali. De repente, a voz de Elis em depoimento (por cima de um Villa-Lobos) nos diz que “a gente é assim, a gente acredita nessa coisa de democracia”, pra emendar na sequência com a letra de “bossa nova mesmo é ser presidente desta terra descoberta por Cabral”, finalizando o espetáculo com “Cartomante” e seu “cai o rei de Espadas / cai o rei de Ouros / cai o rei de Paus / cai, não fica nada”.
Extremamente sagaz, esse tipo de estrutura, comum à obra do Stagium, faz crítica e protesto sem panfletagem, e frequentemente através de uma relação que insiste na coexistência: nossas dores e revoltas são acompanhadas pela nossa vida. Não deixamos de viver, de amar, de ter saudades, mas também não deixamos de saber o que acontece, e não deixamos de lutar. E isso tudo eles fazem junto, ao mesmo tempo, lembrando que a arte não precisa se desdobrar ou se esforçar para falar da vida. Ela é da vida, e do mundo, e de hoje — inevitavelmente.
Aérea e festeira, “Batucada” é expansiva, sedutora e contagiante. Usa o samba como mídia e o corpo como mensagem para celebrar, em meio ao batuque, a fantasia de um indivíduo e de um país em estado de carnaval.
Ágil, e com uma progressão afinadíssima pela direção, tem um dos melhores andamentos do repertório do Stagium. A obra é feita para levar a plateia pra cima, e dialoga com uma expectativa — de Brasil e da dança — sem ficar devendo. A execução é apurada e mostra as qualidades do elenco atual do Stagium como há muito não se via.
Em meio a um projeto de abertura e popularização dessa casa, nada poderia ser mais adequado ou mais bem realizado. Por isso existe algo sempre especial em ver o Stagium no Municipal.
fotos: Fabiana Stig (“Sonhos Vividos”) e Arnaldo J G Torres (“Batucada”)