Críticas

Uma invocação de cisne

O Swan Lake Bath Ballet de Corey Baker usa 27 bailarinos em banheiras para invocar cisnes durante a quarentena.

O efeito de Swan Lake Bath Ballet tem tudo a ver com o momento da pandemia, para o qual foi criado: ele pega uma série de referências e elementos reconhecidos, trabalhando com novas perspectivas, adições, substituições e sobreposições que, no todo, bagunçam um tanto a cabeça, misturando a sensação de ver algo familiar e, ao mesmo tempo, algo novo.

A obra é um video de menos de 3 minutos, dançado por 27 bailarinos, de diversas companhias do mundo, incluindo o Ballet de l’Opéra de Paris, o American Ballet Theatre, o Royal New Zealand, e o Hong Kong Ballet. A proposta foi uma encomenda da BBC Arts e do Arts Council inglês para a série Filmed in Lockdown, realizada por Corey Baker, diretor de sua própria companhia, e ex-bailarino do BalletBoyz.

Baker criou a coreografia e videos-tutoriais para os 27 bailarinos, que realizaram a gravação em seus telefones. O resultado, um filme de muita edição e várias sequências de telas dividida, foi lançado em 8 de julho.

A primeira das imagens do video, mostra uma banheira, colocada numa sala, rodeada por velas brancas. Dela, vemos erguerem-se pernas e braços, como se chamados pela trilha sonora. Por um certo ângulo, parece uma invocação, ainda que artística.

E a ela vemos um contraponto um tanto sombrio: alterna-se uma cena de um bailarino em uma banheira cheia de penas. O corpo vai se movendo, navegando, como se fosse uma transição, uma transformação. Mas chama atenção a expressão triste em seu rosto no enquadramento seguinte.

Isolados em casa, bailarinos sem palco fazem, em suas banheiras, rituais para trazer de volta o Lago dos Cisnes. E, como na maioria dos enredos do tipo, aquilo que chega é diferente do que foi chamado.

Não é maléfico, não é assustador. O video não entra nesse tipo de dimensão. Mas ele tem sucesso em colocar em jogo a percepção do que é, e do que conseguiria ser essa obra neste momento. 

A metáfora funciona, não só porque ela bonita, mas porque existe lógica nela. Odete aprisionada no corpo do cisne, restrita ao lago, aqui se reflete nos bailarinos aprisionados nas banheiras, também alegoria de algo maior: nós todos, de certa forma aprisionados em casa.

Na segunda metade do video, já vemos pés em sapatilhas de ponta, mas dançando dentro da banheira, mantendo a reflexão do aprisionamento do espaço. A transição mais interessante é a que nos mostra pequenas possibilidades de escape dessa situação. De repente, temos duas banheiras ao ar livre, e, finalmente, cheias de água, que espirra com a movimentação.

Um rosto se afunda na água, e o espaço se transforma para uma situação debaixo da água, numa piscina, com um efeito muito bem aplicado de edição do som, que também parece submerso.

É como se essa versão do Lago focasse no feitiço. Tanto no feitiço central do enredo do balé, como também na própria ideia do feitiço cênico, da relação de encantamento e criação de uma obra, para um público, frente a uma plateia — mas a partir de tanta dedicação e construção de vários artistas.

Ao final, esse segundo feitiço, o ritual, parece surtir efeito, com o aparecimento, de volta no primeiro cenário, da figura completa do cisne branco, batendo suas asas, e ainda dentro da banheira.

Quando o video se encerra, mostrando o interior dessa banheira rodeada de velas, só vemos um pouco de água ao fundo, e penas boiando. De um jeito muito parecido fica o espectador: há o êxtase do encantamento, e ele passa depressa, deixa só um rastro, que ao mesmo tempo que nos preencheu, fica como evidência do vazio.

É um sopro. Um bater de asas. E o esforço de sua criação é monumental. Mas ela funciona, transporta, recupera algo, e nos leva a algum outro espaço. Ainda que talvez nos afogue em um lago — do tamanho pequeno de uma banheira.

<assista ao video>