Corpo, erotização e censura
A censura muitas vezes vem disfarçada de proteção. A quem interessa dizer que a dança é indecente?
Sempre tem algum tipo de dança e de movimentação sendo atacada e censurada como indecente. O discurso da culpa, do pudor, da sexualização e do ataque à família, à moral e aos bons costumes, ainda que seja completamente contemporâneo, tem raízes velhas.
A carta de Pero Vaz de Caminha registra que os povos indígenas andam nus, mas “nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”. Porém a presunção da inocência durou pouco: quando o Padre Manoel da Nóbrega chega em 1549 para liderar o movimento jesuíta no Brasil, ele pede com urgência que “mandem pano para que se vistam”. O corpo precisa ser afastado do pecado. Ele precisa ser censurado para se evitar a luxúria.
Essa dinâmica ainda é um alvo político. Por isso que causa muito susto, mas pouco assombro, que a gente continue tendo propostas de proibição de danças. Veja bem, nunca é de toda a dança. O problema não sao os bailes da sociedade. Os problemas são os batuques, os fandangos dos povos escravizados, que na Curitiba de 1807 eram puníveis com 50 açoites no pelourinho, 30 dias de cadeia, e multa.
A resposta é sempre a mesma: a preocupação com a defesa dos bons modos, da moral, da família e dos costumes. Recuperei esse assunto quando soube do PL 86/2021, de Chapecó (SC), propondo a proibição da “exposição de crianças e adolescentes no âmbito escolar a danças que aludam a sexualização precoce, promovendo a prevenção e combate a erotização infantil nas escolas do Município”.
É do nível do ridículo precisar afirmar, mas, registre-se, ninguém acha que a sexualização precoce e a erotização infantil devam ser incentivadas. Isso posto, esse tipo de propósito sempre levanta os cabelos da nuca: quem é que diz o que é obsceno? Quem diz que é a dança que sexualiza? Quem é que se permite dizer que aquilo que afronta a moral e os costumes do seu grupo é o bastante para sere critério de juízo, de legislação, e de censura?
Associações e Conselho em Santa Catarina publicaram notas de repúdio. Em lives, educadores debatem e querem ser ouvidos. Perguntam onde o problema foi diagnosticado. Quais são os dados que levam a esse tipo de resposta, que parece colocar na escola e na dança, a responsabilidade por um problema que tem origens diversas.
A tentativa de proibir essas danças e sua discussão no ambiente escolar não corre o risco contrário? De impedir que alunos e professores discutam e reflitam sobre as questões da erotização. Como legislar sobre algo que é visto como um problema da educação sem incluir os educadores? Como falar de dança sem incluir gente da dança?
Projetos semelhantes têm se espalhado pelo Brasil. Por trás dessa pretensa defesa da infância, frequentemente se esconde preconceito e rejeição a formas de arte que ofendem certas sensibilidades. E que formas são essas? Não, nunca são os bailes da sociedade, mas aquilo que possa se aproximar do batuque, das expressões de camadas não dominantes.
Frequentemente, o que se quer é proibir o funk, o passinho, como antes se condenou, censurou, e proibiu o rock, o tango, e o maxixe — que Rui Barbosa chamou de “a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”.
A insistência continua nessa ideia do selvagem. Daquele que precisa ser protegido de seus costumes e de sua cultura porque não é capaz de ver que são errados. Se você prestar atenção, dá pra ouvir os ecos de Manoel da Nóbrega pedindo “mandem pano pra que se vistam”. Mas nem a sociedade, nem a escola, nem a dança precisam de missão de catequização e censura.
[Ao longo de 2021, os textos publicados na 3ºsinal receberam o apoio da Lei Emergencial Aldir Blanc do município de São Paulo, que viabilizou uma série de ações como a 3ºsinal e a reformulação do site Outra Dança]