‘Corpos Velhos’ no Municipal
Dança tem idade? Tem prazo de validade? Até quando você pode dançar? — um evento histórico questiona o lugar dos corpos velhos na dança
Na quarta-feira, o Theatro Municipal de São Paulo esteve praticamente lotado. Quem chegou perto da hora ouviu, junto com os sinais pra plateia entrar, o aviso de que eles estavam imprimindo mais ingressos pra entregar aos convidados. Quando os ingressos chegaram, eles eram do Anfiteatro. Lá no alto, lá longe. Os lugares mais distantes da casa, os mais baratos, e os que normalmente nem são vendidos. São poucas as produções que usam esses ingressos, porque são poucas as que usam os 1523 lugares do TMSP. Essa semana, as pessoas se disputavam pra conseguir lugares — mesmo que fosse pro anfiteatro — pra ver a apresentação única de “Corpos Velhos – Pra Que Servem?”.
O trabalho, que estreiou ano passado em Campinas, na Bienal Sesc de Dança, em apresentação única, e depois fez só mais duas apresentações no Sesc Consolação, foi o maior evento de 2023. Tem a magnitude dessas coisas que antecipadamente se anunciam como marcos. Sim, é preciso dar tempo pra ver se as coisas que hoje parecem históricas vão se inscrever mesmo na história. Mas sobre “Corpos Velhos” a gente pode arriscar sem muito medo.
Com uma plateia lotada de gente da dança de várias épocas e de vários locais, entre a ansiedade antes do início, a intensidade dos aplausos, e a tietagem ao final, o evento já sentia diferente. Pelos corredores, eu ouvi todo o tipo de máxima sendo colocada ao espetáculo. Um primor. Um deleite. Um escândalo. Um marco. Incomparável. Histórico. Inesquecível. O que move as reações tão intensas é a magnitude da ideia. Uma proposta de colocar em cena artistas de idade e tempo de carreira avançados. A cena e a coreografia exploram qual é a dança possível a eles. Mas a tônica que se sobrepõe lida com qual é o papel da dança em suas vidas — agora, e até agora —, e, em paralelo, o papel deles na Dança (com “D” maiúsculo).
Impacta a sobreposição das histórias que se encontram no palco. Luis Arrieta, com cinquenta anos de carreira, coreografa desde 1977. Argentino, veio ao Brasil pra dançar no Ballet Stagium, depois passou para o Corpo de Baile Municipal (o atual Balé da Cidade de São Paulo), onde seria, além de bailarino, também coreógrafo, assistente de direção, e diretor artístico. Arrieta testemunha o projeto de modernização do Balé da Cidade, iniciado em 1974, com uma equipe que incluía Iracity Cardoso, que já tinha sido bailarina e professora no Ballet Stagium nos anos 1970, e também foi bailarina e assistente de direção do Ballet du Grand Théâtre de Genève, diretora do Ballet Gulbenkian, Diretora da São Paulo Companhia de Dança em sua fundação, e diretora do Ballet da Cidade. Monica Mion também fez esse caminho, passou pelo Stagium, dançando nos anos 1970, e depois pelo Balé da Cidade, onde fez 30 anos de carreira, como bailarina, ensaiadora, assistente de coreografia, e depois diretora, posição em que passou 9 anos — maior período de gestão da história da companhia. Foi na gestão de Monica Mion que Lumena Macedo, que tinha sido bailarina do elenco principal e da Cia 2 do BCSP, passou a atuar como assistente de Coreografia, Ensaiadora, e Diretora de Ensaio, depois de um início de carreira na Cisne Negro Cia de Dança.
Pela Cisne também passou Yoko Okada, que foi solista no Ballet do IV Centenário, a primeira companhia profissional de dança de São Paulo, em 1954. Depois, ela ainda fundaria e dirigiria, com o mestre Ismael Guiser, o Ballet Ismael Guiser. Guiser também foi importante na história de Neyde Rossi, que dançou no IV Centenário, entrando como estagiária, a mais jovem do grupo, e rapidamente sendo promovida até primeira solista, depois passando por alguns grupos independentes, e se estabelecendo como uma das maiores referências de São Paulo no ensino do balé clássico. Marika Gidali também dançou no IV Centenário, e em diversos grupos independentes, antes de fundar o Ballet Stagium, em 1971, junto de Décio Otero. Mais longo projeto de companhia privada do país, o Stagium marca a cena de décadas da nossa dança, colocando em destaque também o trabalho do coreógrafo Décio Otero, mineiro que passou pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro e pelo Ballet du Grand Théâtre de Genève, antes de voltar ao Brasil e revolucionar a dança por aqui. Na mesma época, num outro fluxo de revolução da dança, um caminho de pesquisa investigativa, alternativa e experimental se estabelecia no Teatro de Dança Galpão, que teria sua estreia oficial em 1975 como o Ballet Stagium, depois de uma estreia não-oficial em 1974, com trabalho de Célia Gouvea, que era recém formada pela escola MUDRA de Maurice Béjart, e volta ao Brasil tensionando as possibilidades da dança e das políticas públicas para a dança.
Atravessam essa história (e esse trabalho), outros tantos nomes, vários deles que já não estão entre nós. Um destaque, entre eles, pra Ruth Rachou e Hulda Bittencourt, que estiveram em outras versões do projeto, mas faleceram antes que ele fosse aprovado. A realização dessa proposta monumental só foi possível porque foi contemplada pelo Fomento à Dança. Parece quase lógico e previsível esse tipo de apoio a esse tipo de proposta, mas não é. O projeto foi inscrito e rejeitado anteriormente. E, mesmo quando aceito, ele ainda é notável entre os contemplados por ser o projeto de menor orçamento e menor duração na lista. Fica evidente que muito do que o projeto aborda, com a ideia da utilidade e da percepção de um prazo de validade para os corpos que dançam, ainda são questões não resolvidas e fundamentais para a nossa dança — que tem uma história notável, mas talvez não saiba o que fazer com ela, e com seus sujeitos.
Desde que foi anunciado, “Corpos Velhos” gera expectativas imensas. De reencontrar em cena esses artistas. De vê-los em cena pela primeira vez pra tantas pessoas. De parar pra ouvir o que eles têm a nos dizer sobre a dança e sobre os mais de 700 anos de vida e de carreira que compartilham entre si. Mesmo antes de chegar ao palco — a qualquer palco que seja — “Corpos Velhos” já era o projeto mais notável e mais relevante do ano passado. E talvez se torne emblemático, talvez seja uma curva na história da dança. Sim, isso o tempo vai dizer. Mas pra quem esteve em alguma das plateias dessa obra, e pra quem esteve no Teatro Municipal de São Paulo pra ouvir a chuva de aplausos e reconhecimento, “Corpos Velhos” nasceu histórico. E é uma história que cada um de nós vai seguir contando por anos ainda.