Retrospectiva 2023
O ano começou! Que dança esse novo ano encontra? A Retrospectiva de 2023 levanta pontos importantes pra dança de agora
Janeiro começou com tudo. Mas ainda dá tempo de fazer uma pausa pra refletir sobre o que tem sido a dança de agora, e começar a vislumbrar possibilidades, desejos, e sonhos pra dança que está por vir. Nessa retrospectiva, eu levanto 7 pontos que me marcaram com a dança de 2023. Pra você, o que marcou?
A potência dos corpos mais experientes
Dois grandes encontros artísticos chamaram a atenção na programação de dança desse ano passado, os dois lidando com bailarinos de muita experiência. “Corpos Velhos – Pra Que Servem?”, organizado por Luis Arrieta e pelo Portal MUD colocou de volta em cena uma lista histórica de intérpretes fundamentais da dança de São Paulo: Luis Arrieta, Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada. Juntos, somam 700 anos de vida, e de carreiras notáveis. Esse projeto foi a primeira oportunidade pra muita gente mais jovem ver alguns desses artistas em cena. A potência do trabalho tem causado comoção, e o que seria um evento pontual já é visto como um momento da nossa dança, e sondado por sua continuidade. Outra volta aos palcos daqui trouxe Ana Mondini pra dançar com Cláudia Palma e Armando Aurich. “Miêdka” também causou sensação — quase quatro meses depois, ainda se discute a potência cênica desse elenco. Levantando a sugestão de tudo que uma dança mais experiente tem ainda pra oferecer, fica a provocação para repensarmos algumas estruturas de funcionamento da dança: como se constrói e quanto dura uma carreira?
A esperança das jovens companhias
No extremo oposto, a juventude na dança também tem apontado deliciosos caminhos. Companhias jovens, jovens companhias, e companhias de elencos jovens têm sido uma resposta pra efervescência da dança de hoje. Não somos reféns da memória dos anos 1970 e 1980. A dança dos anos 2020 — a dança acontecendo agora e surgindo agora, —tem um valor e um interesse imensos. Atravessada pelas questões atuais, pelas experiências de vida do agora, essa dança apresenta assuntos e formas de trabalho novos. E tem sido, frequentemente, um farol em meio ao ocasional marasmo de certas continuidades. O Ballet de Londrina passou por aqui em um momento marcante, em meio a um processo de renovação da companhia e de seu elenco, que já dá bons frutos. Vimos também novíssimas propostas, como a recém-criada Ayodele Cia de Dança, que produziu um dos espetáculos mais relevantes de 2023, e precisa estar em todos os radares pra 2024. Também, apesar de já ser elogio repetido, o trabalho da Cia Jovem de Jundiaí continua impressionando pela consistência e continuidade, que se espalha pra diversos projetos e ações, mas já é uma referência — e é a minha resposta atual pra garantia de “onde ver dança boa”. Sim, estamos a um passo de trocar teatros tradicionais da capital pelo Polytheama, casa do grupo. Jundiaí talvez esteja fora de mão, mas hoje talvez seja o destino mais importante pra nossa dança.
Circulação e eventos
Esse ano me surpreendeu positivamente com um tanto de circulação de trabalhos. Algumas temporadas que mantiveram o delicioso formato extendido e em múltiplos espaços (mesmo quando só aqui na capital), me deixaram com o sorriso largo de saber que temos opções, temos possibilidades e temos diversidade na nossa dança. Isso é fundamental pra fazer mais gente chegar na dança. Ficou uma impressão de que vi mais gente, e em mais espaços. Ajuda que esse foi um ano de eventos: ano de Bienal do Sesc, mas que também viu boas edições da Semana Paulista de Dança, do Dança em Trânsito, do Cinefestival de Ecoperformance, da Mostra de Dança Itaú Cultural, do Dança à Deriva, do Mulheres em Cena, além de eventos e programações especiais, como o Dança em Relação Com Crianças, e especialmente a Mu_Dança Mostra Universitária — evento que demorou pra acontecer, mas já é um marco e precisa ser continuado.
Gente pra ver dança
Esse ano mantém na minha cabeça uma coisa que me ocupava já faz tempo, com muita satisfação: tem gente querendo ver dança. Desde o início do pós-pandemia, foram raras as ocasiões em que eu vi salas vergonhosamente vazias. A vontade de sair de casa parece que continuou com força, e eu tenho encontrado gente nas plateias. Gente-gente, não só gente-de-dança. Mas eu sempre tenho uma dúvida, e até um receio, de se essa gente está sendo bem tratada. Se se sentem acolhidos pela dança. Eu sei dizer que eles chegam lá. Mas pelo amor de deus, não vamos desperdiçar essa oportunidade fazendo essa gente toda sair de um espetáculo querendo nunca mais ver dança na vida. E pra isso acontecer, tem um tanto de cuidado importante, que infelizmente tem escapado pelas brechas. Tenho dois pontos bem específicos de reclamação sobre isso pra essa retrospectiva.
Durações enganadoras
Esse ano eu reclamei, e reclamei com gosto. Uma coisa que me chocou e que muita gente me ouviu falando, inclusive aqui na 3ºsinal, foi sobre os erros de informação da duração de apresentações. E não, eu não estou falando de um erro de 5min. Eu to falando de vinte minutos, meia hora, quarenta minutos de duração a mais que o previsto. Entre os vários problemas e dificuldades, esse ano passado vai ficar na minha cabeça como o ano em que o povo perdeu a linha na indicação do tempo de duração das obras, e como a primeira vez em que eu sinceramente considerei levantar e sair antes do final de uma apresentação por esse motivo.
Dificuldades de comunicação
2023 também marcou mais um ano de problemas de comunicação. Várias situações que fazem parte da dança há muito tempo estão de volta em altos e baixos. Se a comunicação, o saber onde tem que dança e quando, sempre foi meio capenga, esse ano demos três passos pra trás. Fui descobrir temporadas da forma menos estruturada possível: com alguém perguntando “você não vem ver a gente?” — e eu sem saber que a gente era esse, onde essa gente tava dançando, nem quando. A comunicação nunca foi um forte na dança. Durante a pandemia, o estado de absoluta exceção parece que forçou um ajuste de comportamento, e uma intensidade comunicativa, que já se dissipou e já foi pra um estado pior do que estava em 2019. A esperança é que bons tempos soprem boas novidades. Que nos devolvam os programas de sala, as informações mais elaboradas sobre as obras, os processos, as intenções. E também o serviço básico — o que, quando, onde —, pra gente poder achar a dança que quer ver, e pras pessoas sairem das apresentações sentindo que de fato conseguem se relacionar com o que viram.
Novos formatos, novos espaços, novas vozes
Pra encerrar numa nota boa, esse ano tem um ponto que é há anos uma reclamação, e pela primeira vez aparece como algo positivo. Pessoalmente, a minha maior felicidade esse ano que passou foi me sentir menos sozinho no campo da escrita sobre espetáculos de dança. Novas vozes têm despontado, construindo um espaço fundamental e generoso de troca, de comunicação e de reflexão, que finalmente talvez provoque um renascimento da discussão sobre dança, e quem sabe até da crítica de dança. Além do Outra Dança, e também dos Arquivos de Okan, da Deise de Brito, que publica há algum tempo, esse ano muitos olhos foram se encontrar no Movimento e Som da Tatiana Avanço, e no Post de Dança, da Jane Oliveira. Com propostas específicas, histórias e origens interessantes, essas autoras e colegas vêm somar à produção de pensamento sobre dança. Os sites e os perfis valem super a pena e recomendo demais. É fundamental a gente não estar sozinho, e esse ano eu finalmente me senti mais acompanhado. Obrigado a elas pelas partilhas.
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É isso, altos e baixos a gente tem todo ano. Mas depois de um período com uma imensa sensação de estarmos perdidos, me parece que aos poucos a dança vai se re-encontrando. Não como ela era antes (claro, e ainda bem), mas como ela ainda pode ser. 2024 se inicia com essa sensação de uma dança fervilhando: prestes a borbulhar, prestes a grandes coisas. Fica a esperança que a gente saiba aproveitar esse momento propício pra encontrar os nossos desejos, e pra movê-los — em ação e em dança boa. Feliz 2024!