Entre o pertencimento e os deslocados
Quando você assiste dança, você sente que faz parte? Qual é o seu lugar na dança? Quem mais está ali com você?
Tem gente que gosta de fazer a aula todo dia no mesmo canto da sala. Eu sou desses. Seja mesa, auditório, chão, aparelho, ou barra, eu sempre tive um conforto enorme em repetir onde estou. É uma questão de zona de conforto, no sentido mais físico possível. Ela acalma, deixa uma cara de reconhecimento, pertencimento, facilita o entendimento, e libera o foco pra se preocupar com outras coisas: realizações, detalhes, execuções…
Ao mesmo tempo, é um espaço que, por ser de conforto, evita confronto, evita desafio. Na formação e na prática em dança, acostumar com a variedade dos espaços — com a transformação que uma mesma proposta sofre de uma sala pra outra, de uma sala pra um palco, de um palco pra outro, e do palco pra rua — também é algo fundamental, cognitivamente, e também afetivamente.
Essa transformação tem um papel de provocação. O inusitado, o inesperado, empurram fronteiras, tensionam os entendimentos que já estão estabelecido, e são incontornáveis pra se poder questionar o senso comum, o status quo. Entre a zona de conforto e o caos criativo talvez existam inúmeras possibilidades de colocação. Onde estar, o que propor, em que estruturas mexer. Provocar é uma forma de mudança. Mas também tem mudanças que só servem pra deixar tudo do mesmo jeito…
Eu me questiono sobre esses cruzamentos e tensões em eventos, em temporadas, em companhias de dança. O que acontece quando se troca uma pessoa, um elemento importante do tipo de trabalho que já era feito, uma proposta, um tipo de entendimento de dança? O que acontece quando aquilo que a gente vê no trabalho de um grupo destoa daquilo que a gente via, daquilo que a gente esperava desse grupo?
Toda mudança é boa? Toda mudança tem propósito? Toda provocação move? Que zonas de conforto precisam de turbulências?
Às vezes, frente a uma dessas situações me bate um sentimento forte de desajuste. Sim, alguma coisa está fora do lugar. Será que sou eu? Como se dá essa dinâmica entre a provocação no processo da criação artística, e a provocação do resultado da criação artística, no seu contato com o público? O tempo me insiste no convencimento de que tem público pra tudo. Em proporções e lugares específicos. Não é qualquer coisa pra qualquer um. Não é qualquer coreógrafo pra qualquer público. Nem qualquer trabalho pra qualquer espaço.
Mas a gente experimenta. Testa combinações. Extrapola possibilidades. Nem sempre o inusitado encaixa. Às vezes ele fica ali, completamente fora do lugar, gritando sobre seu desencaixe. E às vezes é sobre isso. Se a dança fica presa ao que ela já sabe, já conhece, já faz, já entende, já estabeleceu, como a gente sai do lugar? Sem sair do lugar, como é que se mexe, como é que dança?
Mas, sem parar em lugar nenhum, como construir uma relação? Seja com um jeito de fazer, com um modo de pensar, com um espaço, com um público. No um pra um, a gente até pode viver desse jeito, inquieto, inconstante, sem pouso, o tempo todo redescobrindo e reinventando. Pode até ser lindo. Mas dá pra criar essa relação de forma pontual, instantânea? Nos poucos minutos que o público entra em contato com um trabalho? Ou isso só funciona com iniciados? Com os que já seguem, já conhecem, já entendem, já topam a proposta?
Como a dança consegue mover, continuar, caminhar, e não deixar pra trás um público que se sente deslocado, sem pertencimento, sem lugar? Quando você assiste dança, você sente que faz parte? Qual é o seu lugar na dança? Quem mais está ali com você?