Problemas do figurino na dança
O figurino revela, oculta, cobre, modela e altera como vemos o corpo que dança, e a dança que esse corpo dança
A dança interage com diversas outras áreas artísticas e técnicas. Cada colaboração, cada parceria, cada novo projeto feito em conjunto, abre os mesmos pressupostos e riscos das relações compartilhadas: ideias e propostas, sua realização e seu sucesso, não dependem de uma só pessoa. Em conjunto são feitas as vitórias e os desastres, todos eles compartilhados.
Com frequência escuto comentários sobre essa integração, e o que deu certo ou não nas experiências desse tipo de colaboração na dança. Sobre alguns desses campos ouço muito pouco, quase nada, mesmo que sejam áreas de resultados notáveis, tanto pro sucesso quanto pro desastre.
É o caso de figurinos, que frequentemente passam despercebidos pelas conversas que tenho ou que ouço. De um modo geral, uma impressão meio neutra de tanto faz, que se traduz quase sempre num comentário tipo “achei o figurino ruim, mas ok”, que já começa colocando o figurino num lugar menor, um lugar menos importante, que mesmo quando “ruim”, ainda continua “ok”. Como se ele fosse menos parte da dança.
É um entendimento complicado, e que me surpreende, primeiro porque todas as escolhas estéticas contribuem pra percepção das obras. Mesmo que a movimentação seja um ponto central na dança, é estranho ver um dos campos visuais parecendo menos importante que os outros. Mas sobretudo porque dentro da percepção da centralidade do corpo, o figurino é um dos fatores que mais diretamente afeta o corpo que dança.
Contíguo, ligado ao corpo que dança, o figurino revela, esconde, oculta, molda, modela, altera, determina como a gente vê o corpo que dança, e a dança que esse corpo dança.
Talvez por isso eu sempre me surpreendo com a quantidade de obras que simplesmente não consideram o figurino, ou, pior, aquelas que consideram, mas que parece que não pensam figurino enquanto figurino, enquanto roupa de dança, que dança, vista naqueles corpos, sob aquela luz, naquele cenário, naquela situação de apresentação, naquele espaço.
Os dois maiores problemas que eu recorrentemente percebo em figurinos pra dança são parecidos, e chamam atenção pra uma falta de entendimento da própria dança. O primeiro deles é o figurino-desfile. Esse acontece com frequência, especialmente quando estilistas fazem figurino, sem uma boa direção que chame a atenção pra particularidade da roupa de cena e seu propósito.
O figurino-desfile se entende como central na obra. Ele esquece de ser figurino de dança. Parece uma amostra do trabalho do estilista, exibida não na passarela, mas no palco. Deixa de lado a estrutura coreográfica, a estrutura da obra, e frequentemente só faz sentido no agradecimento, na vista da “coleção” colocada ali lado a lado em bailarinos-manequins.
O outro tipo de figurino problemático, talvez o mais trabalhoso, é o figurino-ensaio-fotográfico. É assustadora a quantidade de obras que têm figurinos incríveis — mas só em foto. No clique, são obras extremamente interessantes. Mas ai o grupo vai lá e dança com esse figurino num palco que fica a tamanha distância do público, que essa coisa toda é basicamente só um borrão. E ai… serve pra que?
Se ele não é percebido, o figurino escorrega facilmente praquele outro risco, o de ser só desconsiderado, ou ser colocado como menos importante. Ele não é, ou pelo menos não costuma ser, o centro das obras. Mas faz parte do todo. Ele está lá e está sendo percebido, junto da dança. Veste a dança, às vezes faz efeitos maravilhosos, às vezes atrapalha, às vezes passa despercebido. Quanta importância você dá pras partes da dança que não são movimento?