Por que alguém quer ver tanta dança?
Essa semana eu comemorei assistir à minha 100ª apresentação de dança desse ano. Por que alguém quer ver tanta dança?
Quando eu tive pela primeira vez a vontade de pesquisar e escrever sobre dança, a professora que se tornaria minha orientadora me disse que pra pesquisar dança, o mínimo que eu tinha que fazer era assistir dança, ao máximo possível.
O ensinamento teve impacto, e eu me desdobrei em tentar frequentar teatros, com todas as restrições que isso implica. Eu morava e estudava no interior, e tinha pouquíssima dança pra assistir por lá. Eu trabalhava por lá, quase sempre aos finais de semana, e viajar pra São Paulo pra ver dança não era uma coisa barata nem tão prática. Mas foi se tornando um hábito.
A percepção que eu tinha de um atraso meu (começar a acompanhar com mais intensidade “só” aos 19 anos) também me empurrou pra outros caminhos, com um tanto maior de esforço pra ver mais dança em registros. Mais videos, que eu fui achando na videoteca da universidade, e depois emprestando de colegas e professores, até começar a encontrar mais opções pela internet, e até chegarmos na disponibilidade dos dias de hoje.
Eu sempre contei com as gravações, e sempre fui grato pela possibilidade de assistir, dessa forma, obras que eu talvez não tivesse outra oportunidade de ver. Mas o gosto da dança só me bate a 100% no teatro, e por isso o meu esforço pra essa presença tem sido cada vez maior.
Quando eu viajei pra pesquisa do meu doutorado eu comecei a fazer uma tabela de obras assistidas presencialmente. Era 2015, e eu voltei pro Brasil orgulhoso de contar 107 apresentações assistidas na viagem, e doido pra manter a conta, porque ai eu já morava em São Paulo, e aqui tem muita dança. As contagens foram aumentando. 113, 118, depois 150, e até os 197 que eu assisti em 2019. Veio a pandemia e os números caíram drasticamente, pra menos de 50 em 2020, e razoáveis 95 em 2021.
2022 veio com muita promessa, e assustadoramente muita programação. Essa semana eu fechei o primeiro semestre de 2022 comemorando assistir a minha 100ª apresentação de dança desse ano — de longe, a melhor contagem que eu já consegui.
Assistir muita dança tem efeitos engraçados. A surpresa se torna mais rara. Uma percepção do momento como um movimento conjunto fica mais afinada. É difícil separar todos os projetos e ideias como coisas independentes. A dança passa a ser — de fato — um campo, de múltiplos agentes, nem sempre cientes de seus pares, mas agindo simultaneamente.
Outras percepções se escancaram: quantidade nunca significou qualidade. O excesso de produção não é necessariamente um excesso de coisas especialmente notáveis. Mas o que ele testemunha é um aquecimento da área. O tanto de gente que se interessa em fazer dança, pensar dança, apresentar dança. E, também, ver dança. Ainda temos plateias esvaziadas, e obras chegando em pouca gente, mas cada vez menos eu vejo os absurdos de plateias vazias que eu via há uns 10 anos.
Eu quero acreditar que esse esforço me dá um tanto de entendimento da dança de hoje. Que isso me qualifica pro trabalho que eu escolhi. Mas, acima de tudo, isso é um reflexo de desejos. De querer encontrar em jeitos de viver cercado de dança, imerso em dança, mesmo sem dançar há mais de uma década, já. Eu descobri muito cedo que meu lugar de preferência é a plateia. Que bom que tem tanta gente boa no que faz pra eu poder continuar tendo tanta dança na minha vida. Seguimos pra próxima centena.