Você precisa mesmo desligar o celular?
O incômodo com hábitos sociais é mais que uma questão de etiqueta: você precisa desligar o celular no teatro?
Todo processo de retomada inclui períodos de ajuste, com a recuperação de hábitos, alguns deles mas cristalizados do que outros. Com a volta do público presencial aos teatros, questões específicas vem à tona. Como frequentar em meio a desconhecidos, locais públicos que podem incluir alimentação, compartilhamento de espaços em proximidade, e diversas outras situações de exposição e dúvida?
São muitas as perguntas e muitos os hábitos que causam preocupação. Aquele na minha cabeça esses dias não tem nada a ver com vírus e contágio. É um hábito que nunca completamente se resolveu, e ameaça intensamente voltar com toda a força: pessoas usando celulares na plateia. Nos últimos teatros onde fui, o efeito rebote pareceu intenso: praticamente todas as vezes que estive em uma plateia, eu vi um celular acender ou tocar.
Durante o isolamento e com o teletrabalho diminuíram as ocasiões em que ficamos de fato sem contato com o celular. Agora que começamos a retornar a espaços onde o celular não deveria aparecer, esse apego talvez motive ainda mais a dar uma olhadinha, só pra ver o que está perdendo.
A pergunta que volta pra minha cabeça — e volta porque ela já existia antes da pandemia — é: você precisa mesmo desligar o celular? E, veja bem, a resposta precisa de algum balizamento inicial, porque não estamos mais nos anos 1990, e ninguém precisa desligar um celular pra ele não causar nenhum incômodo. A tecnologia já tem uma quantidade grande de possibilidades pra cumprir com o efeito desejado e necessário de impedir perturbações sonoras e visuais.
Ninguém precisa que o seu celular esteja desligado, mas todo mundo precisa que ele seja completamente discreto, que ele não se pronuncie, e não seja percebido pelos demais. É difícil de medir o tamanho da distração que uma luz acendendo no meio da plateia escura causa. É um saco tentar falar do tamanho do corte de clima que o som de um celular causa por cima de uma trilha sonora planejada.
A arte é um momento de suspensão. Mesmo quando ela coloca nossos olhos focados na realidade, e bota o dedo na ferida, ela ocorre em um momento suspenso. O tempo e o espaço fazem curvas mirabolantes enquanto aquela obra se desenrola na nossa frente. Qualquer distração arrisca derrubar brutalmente essa elaborada construção.
O problema é real, e portanto tratar dele é essencial. Porém, às vezes a emenda sai pior que o soneto. A coisa que mais tirou a minha atenção em apresentações até hoje foram os lasers vermelhos do Theatro Municipal. Eles cumprem o papel de constranger a pessoa com o celular, mas normalmente atrapalham muito mais gente do que essa pessoa já estava atrapalhando. Porém, se deixar o público auto-responsável for a alternativa, a gente sabe que talvez nunca encontre uma boa solução.
Porque pegar o celular, acender e verificar notificações é um hábito que se enraizou na grande maioria da sociedade, e que ficou ainda mais insistente durante a pandemia. A esperança seria que, com o tanto de coisas desse período que queremos deixar pra trás, celulares se manifestando na plateia entrasse na lista e também ficasse no passado. Mas eu sei que essa esperança tá um tanto além das nossas mãos — exatamente onde os celulares deveriam ficar durante uma apresentação.