Dança ucraniana
Enquanto alguns bailarinos trocam o palco pelo exército, relembramos marcas que a Ucrânia deixou na dança
A gente vê que a guerra invade todos os aspectos da vida. Essa semana, um bailarino e uma bailarina do balé nacional da Ucrânia viraram notícia ao trocar o palco pelo exército. Pelo mundo, os bailarinos russos, e as companhias que os abrigam, são chamados a registrar sua desaprovação à invasão e à guerra. O Royal Ballet inglês abriu a temporada essa semana colorido nas cores da Ucrânia, e a orquestra emendou o hino nacional ucraniano com a abertura do Lago dos Cisnes que dançaram naquela noite. O Balé Nacional Canadense está dedicando toda a temporada de inverno ao povo ucraniano, com anúncios antes de cada apresentação.
Enquanto a participação da Rússia em diversos eventos culturais é cancelada, duas grandes produções de balé russas foram abandonadas por causa da guerra: o coreógrafo Alexei Ratmansky deixou a montagem de sua criação no Bolshoi, e abandonou o projeto da reconstrução de A Filha do Faraó no Mariinsky.
Um dos mais importantes coreógrafos de balé do cenário atual, Ratmansky nasceu na Rússia, cresceu na Ucrânia, se formou em balé na Rússia, mas dançou na Ucrânia, antes de se tornar diretor do Bolshoi, e depois Artista Residente do American Ballet Theatre. Domingo passado, o New York Times reportou que Ratmansky acordou em seu hotel em Moscou com uma ligação de sua esposa, que é ucraniana. De volta em casa, nos EUA, sua maior preocupação fica com a família, ainda na Ucrânia. O coreógrafo diz que não sabe se volta à Rússia enquanto Putin for presidente.
A Ucrânia não está frequentemente no mapa mental da dança. Toda a questão territorial do leste europeu aumenta a confusão, mas esse não é um país sem história na dança mundial. Nijinsky é filho de poloneses, mas nasceu em Kiev, na época ainda dentro do Império Russo. Também foi pra Ucrânia que Bronislava Nijinska fugiu durante a Primeira Guerra Mundial. Ali ela fundou uma escola de dança moderna, que durou pouco, mas deixou uma marca na tradição ucraniana, antes que ela fugisse pra Polônia.
Seu mais ilustre aluno em Kiev foi Serge Lifar, que se tornou estrela dos Ballets Russes de Diaghilev, e depois diretor do Balé da Ópera de Paris por três décadas. Lá, foi o responsável pela restauração moderna da companhia, trabalhando durante a Segunda Guerra, inclusive durante a ocupação nazista de Paris.
Nessa mesma época, uma outra bailarina ucraniana deixou seu país, de forma muito mais violenta. Eugênia Feodorova teve a família perseguida e assassinada por nazistas. Ela mesma foi enviada pra um campo de trabalho forçado na Alemanha, onde ficou depois do final da guerra, trabalhando em diversos países da Europa, de onde fez a travessia para o Rio de Janeiro, a convite de Dalal Achcar.
Feodorova montou o primeiro Quebra Nozes integral no Brasil, em 1956. Dividiu seu trabalho entre o grupo de Achcar, sua própria escola, e o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde é lembrada como uma das responsáveis por elevar a companhia a um nível internacional. Feodorova faleceu em 2007, deixando cinco décadas de trabalho pela dança brasileira.
Tudo parece tão distante, tão improvável, que, traduzido em notícias de jornal, nem sempre parece real. Uma bailarina ucraniana segurando um rifle no Instagram nos lembra que é real, e que mesmo longe, a guerra invade todos os aspectos da vida, e altera a dança, porque altera todo o curso da história.