Críticas

Mais flores

Frente às incertezas do momento, o Ballet Stagium coloca seu elenco pra discutir o agora. Entre a ameaça e o lírico, fica um chamado para encontrarmos mais flores.

Tem um tom de ameaça que atravessa Fluorescência, mais recente criação do Ballet Stagium. Esse tom é marcado com um jeito de andar dos bailarinos, com os braços esticados aos lados, e as mãos flexionadas, e sem nenhuma leveza. É algo meio totem, meio máquina, que pesa sobre o palco como uma dúvida, carregada nos corpos em cena.

Essa dúvida, esse questionamento, são toda uma ligação com o momento de agora do mundo. A incerteza pandêmica, a constante ameaça daquilo que não sabemos, daquilo que não temos controle, que pesa sobre as pessoas, enquanto elas encontram outros jeitos de continuar.

Fluorescência marca um diálogo com o presente, partindo de lugares extremamente pessoais do elenco do Stagium, que busca um tanto da resposta do “o que é esse momento pra você”. E as respostas que recebemos são tão variadas quanto se possa imaginar. Do carinho lírico a uma preparação para o confronto, a obra não tem uma só proposta, assim como o momento não tem uma só leitura.

As cenas desestruturam e desarticulam um aspecto de sequência contínua. Elas não são exatamente lineares. A direção teatral de Marika Gidali trabalha trecho a trecho em suas amarrações com os bailarinos, indivíduos, sujeitos desse tempo e de si mesmos. A reflexão em pauta foca a continuidade: o mundo continua, tanta gente continua, mas continua com outra cara. Uma cara tão estranha que nem parece que gira mais do mesmo jeito. Algo que explode pra muitas direções e cria múltiplos pontos de partida, e faz a obra poder ser assistida como se fosse uma instalação, esperando a ativação do público, assim como ela espera e depende da ativação dos seus próprios intérpretes, que nos entregam seus medos e suas esperanças descaradamente. Um tanto de poesia e despudor que fazem parte do Stagium e caem bem nesse momento. 

O tamanho da abertura para uma pessoalidade na cena favorece uma proximidade intimista. Não estamos lidando só com diversos olhares sobre a pandemia, mas com esses olhares específicos. O tom de depoimento é parte do que nos atravessa, carregado junto de uma trilha sonora mista, porém focada em canções na voz de Maria Bethânia. “Cálice” abre o espetáculo e já encaixa as expectativas daquilo que o Stagium é conhecido por fazer, porque aponta pro engajamento enquanto reflexão artística e lírica.

O lírico, o poético, o sublime, aparecem em cena recorrentemente. Aqui, são lidos como estratégias de sobrevivência: no momento em que somos privados de tantas coisas, nos agarramos à beleza, à arte, ao desejo do encontro. “Onde estará o meu amor?” e “Explode coração” colocam essa tônica em evidência, misturando a angústia e a vontade. Ilustram também o melhor do estilo coreográfico de Décio Otero em duos românticos. Enchem os olhos, iluminam o coração. Deixam um instante de suspiro e devaneio que transporta, e que, em tantas outras cenas, é brutalmente quebrado. Outros momentos, como o solo de Pedro Vinicius Bueno e “Carcará” misturam o atletismo com a pesquisa de dança moderna que também faz uma das marcas do Stagium. 

O saldo de Fluorescência é extremamente positivo. Faz um dos mais interessantes trabalhos recentes do Stagium, mostra seu elenco em boa forma, e atualiza a importância dessa companhia na cena de São Paulo depois de seu aniversário de 50 anos, porque mostra as raízes e as propostas do trabalho tão autoral de Gidali e Otero, atualizadas dentro daquilo que é o mote principal dessa companhia cinquentenária: o olhar para o tempo presente.

O presente que encontramos, e isso não é segredo pra ninguém, tem mesmo um ar esquisofrênico. Mistura um conjunto de incertezas com desconfianças e boas vontades. Escorre gosto de saudades. Carrega, no entanto, uma luz de esperança. A obra é branca e delicada, como seus figurinos (de um tecido que parece pano de prato, e estão entre os mais inteligentes dos últimos anos), e inclui um tanto de se despir, de descobrir o corpo das incertezas, e acreditar que mais flores nascerão.

Quando se encerra, com a mensagem do poema de João Apolinário que “É preciso avisar toda a gente / (…) que por cada flor estrangulada / há milhões de sementes a florir”, a obra deixa seu recado. É preciso florir. É preciso florecer. E encontrar a luz que emitiremos depois de expostos a toda essa situação. Não dá mais pra segurar. Fl(u)orescemos. 

Idéia e Coreografia: Décio Otero

Direção Teatral: Márika Gidali

Música: Lukas Fosss, Maria Bethânia, Bethoven

Poesia:  João Apolinário

Narração: Oswaldo Mendes

Bailarinos: Ádria Sobral, John Santos, Eugenio Gidali, Marcos Palmeira, Pedro Vinicius Bueno, Nathália Cristina, Eduarda Julio, Gabriela Bacaycoa, Tatyane Tieri, Leila Barros, Bruna Costa e Jonathan Santos.

Professores: Raphael Panta, Aline Campos e Iryna Kozareva

Trilha Sonora: Aharon Gidali

Fotos: Arnaldo Torres

Produção: Marika Gidali, Antonio Marcos Palmeira e Fabio Villardi