Críticas

Tudo o que pode um corpo em movimento

Crítica publicada no jornal O Povo, dentro da cobertura da Bienal Internacional de Dança do Ceará 2021

Fortaleza parou pra olhar o céu. Parecia fim de ano, mas não tinha fogos de artifício, e, mesmo assim, toda a gente estava olhando pra cima, encantada e surpresa. Numa linha que cruzava a Praça do Ferreira, a 50m de altura, um homem atravessava o céu, percorrendo 250 metros entre dois prédios.

O nome dessa prática é Highline. Uma modalidade feita em grandes alturas do Slackline, que surgiu como um trabalho de equilíbrio: quando as condições climáticas não eram favoráreis, os alpinistas aproveitavam para andar sobre uma fita, comumente amarrada entre duas árvores, num exercício de concentração e aprimoramento do corpo e suas técnicas.

O nome Highline veio com o aumento da altura, que chegou aos 10m, passando a muito mais, com recordistas registrando alturas de mais de 1000m, e percursos de comprimentos maiores de 1500m. Foi um desses recordistas que vimos andando no céu de Fortaleza, o francês Nathan Paulin.

Esse trabalho é “Les Traceurs”, concepção de Rachid Ouramdane, um dos artistas homenageados por essa edição da Bienal. A obra se ancora no efeito do intérprete andando nas alturas, que já é em si verdadeiramente impactante. A dinâmica do seu movimento funciona por precisão, e por um trabalho constante de lidar com os elementos. O vento, a temperatura, a tensão da corda, o ângulo entre as pontas, tudo altera a situação do corpo, que caminha, mas também se senta, flexiona, deita, pendura e brinca com essa altura, de um jeito que só é possível pra alguém que tem extrema intimidade com esse tipo de proposta.

O nível de concentração remete ao meditativo. À entrada em um estado diferenciado de consciência. É esse estado que passa para a plateia, quando é trabalhado por um outro elemento: acompanhamos essa caminhada com uma trilha sonora sobre a qual ouvimos um depoimento do próprio Paulin, traduzido.

As imagens que ele compartilha falam de suas experiências andando nas alturas. Seus pensamentos, suas memórias, suas possíveis alucinações. O conjunto é extremamente poético. Ao mesmo tempo, ele nos mostra algo que parece impossível, e nos dá toda a materialidade dessa realização. 

É concreto, acontece na nossa frente, e é inacreditável. Assistindo, o público entende bem essa sensação de incredulidade. Você vê, e mesmo assim questiona se crê. Você ouve aquela voz que narra com uma assustadora simplicidade um tipo de movimento que, mesmo olhando, não parece possível.

É esse o sentido de ver uma obra dessa dentro de uma Bienal de Dança. Ela trabalha com tudo o que a gente espera e reconhece de movimento, e mostra que, mesmo dentro daquilo que é conhecido, daquilo que é esperado, ainda existe um tanto a mais que a gente nem desconfiava. Do chão, a gente se deslumbra com tudo o que pode um corpo em movimento. É poético, é intrigante, é instigante. E é um presente pra quem assiste. 

É o tipo de presente que só um lugar que acredita e investe em um evento do tamanho e da proporção da Bienal de Dança pode dar pra sua gente. É o tipo de lembrança que fica na memória pras pessoas depois contarem por gerações que, numa tarde normal, como se fosse comum, como se fosse bobagem, elas viram um homem andando no céu. E ai, se mover ganhou todo um novo significado.

foto: Guilherme Silva

Concepção Rachid Ouramdane

Música Jean-Baptiste Julien

Técnica e vídeo Bertrand Delapierre

Tradução e voz Yesser Kaadi Oliveira

Com Nathan Paulin

Produção Chaillot – Théâtre national de la Danse com o apoio do Instituto Francês, Aliança Francesa do Brasil, Consulado geral da França no Rio de Janeiro e Bienal Internacional de Dança do Ceará

Responsável de produção e de difusão Stéphanie Maillard

Assessoria de comunicação Marie Pernet

Coordenadora de comunicação Nina Bettega