O circo dança?
Como aproximar o circo da dança e das outras artes da cena? O que elas têm em comum? O que elas têm a aprender entre si?
Essa última semana foi tomada pelo Festival Internacional Sesc de Circos. Abrindo espaço na agenda complicada, eu escolhi assistir às apresentações que tinham alguma proximidade com dança: ou falavam de aspectos de dança e coreografia nas divulgações, ou tinham funções na ficha técnica diretamente ligadas à dança.
Muita gente costuma dizer que a dança é a prima pobre das artes da cena, sugerindo que é a que recebe menos investimento e menos atenção. É verdade comparando com ópera, é verdade comparando com teatro. Mas só é verdade mesmo quando ignoram o circo. O circo tem lições importantes pra todas as artes da cena. Olhar pra ele ajuda a desmistificar umas ilusões que colocamos sobre outras áreas, que gostam de se ver como avançadas, mais complexas, mais sofisticadas. Coisa de prima rica, sabe?
O circo costuma ser um tanto mais direto com aquilo que ele é. Um pouco menos de firulas, um pouco mais de honestidade. Um número de acrobacia é legal por ser um número de acrobacia. Sua experimentação, sua invenção, e sua criação artística são justamente trabalhadas em cima daquilo que ele é. É nesse “é um número de acrobacia” que a gente vai buscar o que ele tem de bom e de bem feito, e de criativo e de inventivo — ou então, de ruim e de mal feito, de repetitivo e de ordinário, porque o circo também pode ser tudo isso, como toda arte.
No circo, a gente vê o grau interessante do técnico e da construção estética, mas eu percebo menos máscara. Menos discurso que tenta te dizer que tudo é a mesma coisa, tudo vale, e tanto faz. As construções de circo contemporâneo, carregadas de propostas simbólicas, comunicativas, estéticas, também ajudam a ver a separação entre uma coisa e outra. A acrobacia se faz ou não se faz. Se completa ou não se completa. E, isso à parte, a proposta estética existe ou não existe, comunica ou não comunica. Eu gosto dessa possibilidade, que talvez eu só enxergue justamente por estar menos inserido nesse campo — mas ele de fato me parece menos atravessado. Aqui, a arte é mais do corpo, e menos do discurso. O circo não tem o que parece o desvio de caráter de algumas tendências do pós-moderno. Não ainda, pelo menos.
Digo ainda, porque as coisas têm seus tempos. Ouvi algumas vezes que a pintura captava os movimentos estéticos, logo depois a literatura, anos depois o teatro, e uma década depois a dança. Não é completamente verdade, mas, ignorando, como será que o circo se encaixa nessa lógica?
A pergunta me provocou porque muito do que vi — essa semana e na experiência recente com circo — me remete diretamente ao estilo de dança que chamávamos de à la entrée, um balé em entradas. Basicamente: um espetáculo que tinha tema, e até um fio narrativo condutor, ainda que completamente externo, apartado das danças, que se apresentavam em uma sequência de cenas, uma depois da outra, mas separadas, independentes.
A esse molde segue quase tudo que eu tenho visto de circo, incluindo os exemplos do festival dessa semana. Mas veja, esse era o estilo de dança sendo criticado nos 1700 pelos reformadores do balé. Ainda é o estilo complexo e às vezes incômodo dos espetáculos de fim de ano de tantas escolas de dança…
Quer dizer, as outras artes da cena também têm algo a contribuir com o circo. A dança, em particular, tem um tanto a dizer sobre como comunicar propostas a partir do movimento. E não, não é fazendo uns draminhas de braços e pernas e botando na ficha técnica que um espetáculo é de dança-circo-teatro que a gente atravessa domínios. Nesse caso, falta mesmo é a lição da honestidade do circo.