Memória na estante
O programa do espetáculo é mais do que a ficha técnica. É um depoimento sobre as obras, que a gente leva pra casa e pode rever e recuperar
Depois da questão evidente da presença, do estar junto ao mesmo tempo, o que eu mais sinto falta na dança em tempos de pandemia são os programas dos espetáculos. Aquele pedacinho de papel que eu posso tocar, folhear, levar pra casa, olhar de novo mais tarde, e guardar como lembrança.
Não que estivéssemos numa era de ouro dos programas. Longe disso. Cada vez mais desenvolvidos em design, suporte, formato, cores e impressão, eles têm se aproximado daqueles livros de foto que ficam na mesa da sala pra impressionar as visitas: são lindos de ver, mas não dizem muita coisa.
Trazem uma ficha técnica reduzida aos nomes dos indivíduos, e, se bobear, nem têm informações sobre a temporada, datas, locais. Currículos, só muito raramente, e quase sempre restritos a poucos dos integrantes. Histórico do grupo? Bobagem… Informações sobre a obra, seu processo, seus tempos, suas propostas? Adivinhe.
Tem muito dessas informações que me chega quando eu recebo a divulgação do espetáculo, mas essa divulgação não chega pro público todo. O que pode chegar é o programa.
Há uns 10 anos, eu ouvia discussões bem interessantes sobre ler o programa antes de ver a obra ou depois. De vez em quando essas questões voltam. Mas, de verdade, tem vezes em que não faz diferença: tem programa que não te diz nada.
Sonho de consumo são aqueles programas-livro. Textos sobre um monte de coisa. Depoimentos, análises, discussões, história… Lógico, uma coisa dessas não é barata, envolve mais gente e mais recursos. Mas quando acontece, é daqueles que não dá pra se desfazer.
Nesse momento, enquanto não podemos ir aos teatros, também não podemos pegar programas e levar pra casa. Perdemos a possibilidade da memorabilia. Mas não perdemos a possibilidade do conteúdo. As obras têm chegado digitalmente, e os programas também poderiam, mas quase ninguém tem feito isso. E isso faz falta.
Esse pedacinho de informação organizada, preparada pelos artistas e comunicadores para o público, é um depoimento. Ele não explica, mas conta sobre, e abre espaço para sabermos mais do que fez cada obra ser como é. É também um espaço de divulgação e promoção, para os grupos, os trabalhos, e os artistas envolvidos.
Tem um tanto do ritual, do sair de lá carregando um pouco mais da obra. Mas também tem um papel objetivo, informativo. Ele aumenta as possibilidades de registro, e favorece a memória, aumenta as possibilidades de informação e aumenta a sensação de proximidade com aquele trabalho, aquele processo. E a proximidade costuma ser um bom programa.