Por que tem prêmio pra dança?
Se arte não é competição, por que tem prêmio pra dança?
Uma das coisas que eu gosto desse momento do ano — não, não é o Carnaval — é a temporada de premiações. Eu sempre me encantei com momentos de reconhecimento. Tem algo de contagiante na felicidade de ver pessoas que trabalham tanto se dando conta que outras pessoas também percebem esse esforço, e a importância desse resultado. Essa semana, tivemos esse momento na dança, com o anúncio do Prêmio Denilto Gomes, da Cooperativa de Dança, e da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), que existe há quase 70 anos, e reconhece e premia a dança há 50 anos.
Desde 2016, eu participo da comissão de dança da APCA. E, todo ano, nesse momento, a gente se vê entre os agradecimentos, a felicidade, e, também, a desconfiança. Porque todo prêmio é um recorte, todo recorte é uma seleção, e seleção significa que não tem pra todo mundo, é sempre possível questionar, debater, duvidar e desconfiar de escolhas. Porque essas escolhas são feitas por um grupo pequeno, os limites dos seus integrantes também ficam bastante em evidência.
Às vezes perguntam como funciona a associação, a comissão, a seleção, e a votação. Nada disso é secreto. Os associados da APCA são críticos, jornalistas, e pesquisadores das diversas áreas que a associação congrega. São pessoas com atividades de impacto na reflexão sobre a área (pessoas que discutem artes, não pessoas que fazem artes), e com produção contínua. Os associados são aprovados pela diretoria da associação, e também pelos membros já existentes das comissões.
A atual comissão de dança está junta basicamente desde 2016, mas com variações de formação, e, nesse momento, bem menos gente do que tínhamos há 8 anos. Essa diminuição acontece porque algumas pessoas deixam a comissão, por motivos diversos, desde falta de tempo de dedicação: porque é importante um esforço pessoal para acompanhar a cena da dança; até outros compromissos profissionais: que podem criar situações de conflito de interesse, ou podem só te ocupar demais com ganhar a vida — observação importante, porque ninguém recebe nem ganha dinheiro nenhum pra participar da APCA.
Desde 2016, a Comissão de Dança apresenta indicados às categorias que premia. E desde 2017, fazemos isso semestralmente. No início do ano revisamos as categorias que serão consideradas, no meio do ano fazemos uma reunião para discutir as obras do primeiro semestre, e dessa reunião saem 3 indicados pra cada uma das categorias. Depois, no final do ano, outra reunião faz a mesma coisa pro segundo semestre e apresenta mais 3 indicados. Finalmente, na Assembleia Geral da APCA, votamos, entre os 6 indicados, os ganhadores.
Desde que essa comissão está junta, temos uma preocupação real em dar conta da diversidade que existe na nossa dança. Isso quer dizer tentar ir a mais lugares, ver mais grupos, mais obras, mais propostas e mais entendimentos do que a dança é, pode, e quer ser. Eu duvido, sempre, que seja possível ver tudo. Pessoalmente, eu vejo entre 170 e 200 trabalhos de dança por ano, mas sei que ainda falta. Na hora dos debates, entram em jogo diversos aspectos e critérios, e um esforço absoluto pra diminuir o espaço dos gostos e preferências. Não é sobre o que eu prefiro, nem sobre o que a comissão prefere, mas sobre aquilo que vemos e entendemos como significativo, impactante, relevante — dentro, claro, dos limites que a experiência de cada um nos coloca.
O que resulta dai é uma lista que temos o orgulho de dizer que aponta pra aspectos relevantes da diversidade da dança. Se são os “melhores”, não tenho certeza. Não tem um termômetro inquestionável pra isso. Inclusive, não usamos essa palavra. Nós entregamos, por exemplo, um prêmio de “Espetáculo”, não um prêmio de “Melhor Espetáculo”, e isso não é à toa.
Na hora de escolher e comparar, fica evidente a dificuldade. As coisas que comparamos não são desdobramentos de uma mesma coisa. Não é uma escolha do tipo “tamanho do sapato”, em que um fica apertado, um fica folgado, e um serve. É algo de uma natureza completamente distinta, e a consideração disso pesa em termos de discussão das próprias obras e dos resultados apresentados, mas também de processos, de trajetórias, de contextos, de histórias, e da situação que a dança vive.
Olhando os 8 anos que essa comissão entregou prêmios, dá pra ter orgulho. Se sempre acertamos, não sei. Se existe um “acertar”, nesse contexto, também duvido um tanto. Quando sai a lista, sempre surgem as manifestações de “merecidíssimo”. Mesmo esse conceito eu não sei o quanto se aplica. Muitos são merecedores de reconhecimento. Muitas coisas que não deram notavelmente certo também merecem, ou mereceriam. Pra cada categoria, pra cada ano, eu sempre penso que o resultado poderia ser diferente se um nome estivesse num outro lugar. Os prêmios, assim como a história, são uma coleção de “e se…”, que não podemos acessar.
Mas, eu insisto, são uma luz. Uma lanterna, um foco. Aceso sobre alguns pontos que consideramos, nesse momento, e dentro das nossas (limitadas) condições, como essenciais daquilo que pudemos acompanhar da dança ao longo de um ano. Mas, veja bem, acendemos luzes sobre coisas que têm luz própria. E, frequentemente, uma luz própria muito mais intensa do que qualquer luz que essa comissão, ou uma outra, possa acender. Esse é o nosso reconhecimento daquilo que tanto nos alimenta. E a felicidade é ver a dança cada vez mais notável, mais presente, mais reconhecida, mais iluminada. Como sempre, meus parabéns a todos os indicados, a todos os premiados, e meu muito obrigado a todo o povo que faz dança.