Dança com apelido
Como você fala com alguém sobre as suas danças preferidas? Como você se lembra delas? Qual o apelido que elas têm na sua memória?
“Aquela dourada”, “a das camisetas”, “a do leque”, “aquela com a luz que gira”, “a que tem o gato”: quando o público lembra de um trabalho, às vezes a gente pega só um elemento e é nele que a memória se agarra.
Assistindo, a gente joga com o trabalho, buscando familiaridades. Uma frase da trilha sonora, um percurso pelo espaço, um desenho de movimento. Os padrões e os grupos que se repetem, as dinâmicas entre os intérpretes. Um detalhe de figurino, de cenários, de adereços.
Seja o que for, frequentemente o que fica do espetáculo é uma só característica, pontual, mas marcante. É quase como uma fotografia mental. Mas ela não registra exatamente um instante. Pode ser um aspecto, ou um grupo de elementos, que na cabeça vão compondo uma referência só sua.
De algum jeito, é aquele instante específico que representa a obra pra você. É ele que trabalha a memória, e inicia um processo de recuperar um contato distante, de anos passados, pra transformar “a que tem o gato”, por exemplo, em uma lembrança de um trabalho todo.
Como eles reduzem a obra a um só ponto, esses apelidos diminuem. Mas eles também criam proximidade. Através dessa lembrança (às vezes totalmente superficial) daquilo que é a materialidade do espetáculo, a gente abre o espaço pra um contato bem maior: a memória, não necessariamente dos elementos, ou dos detalhes da obra, mas da nossa relação com ela.
“A das camisetas” dificilmente diz algo pra alguém que não seja eu. Mas na minha memória, essa referenciazinha me transporta uma década pra trás, pra uma madrugada fria, durante uma virada cultural, pra uma plateia intensa e atenta. “Aquela com a luz que gira” não é só uma figura mental, é a lembrança de um dos trabalhos que mais mexeram comigo.
Esse tipo de referência não é um relato histórico, não é uma reflexão de pesquisador, não é uma anotação de crítico. É uma lembrança. Um contato de público, que só aconteceu ali, com aqueles trabalhos — com aquelas camisetas, com aquela luz que gira.
A forma como a gente se refere às obras é quase o jeito como a gente fala dos membros da família. Nem sempre pelo nome, ou pelas características fundamentais, raramente pela identificação de um documento, quase sempre, pelo apelido: aquela coisa que às vezes nem é compreensível pros outros, os que estão fora dessa relação.
Com uma obra de dança, acontece algo parecido. A forma como a gente se refere, o jeito como a gente lembra, não são necessariamente pela lógica da identificação, mas pelo apego da memória e da saudade. Na sua cabeça, qual o apelido da sua dança preferida?