Ataque à crítica
Deu m*rda. Insatisfeito com os comentários sobre uma obra sua, o coreógrafo Marco Goecke atacou uma crítica com fezes de cachorro
De quantos casos de escândalo no mundo da dança você se lembra? Quantos deles envolviam crítica da dança? Pois é. O noticiário das últimas semanas teve uma rara ocasião dessas, quando o coreógrafo e diretor Marco Goecke atacou a crítica alemã Wiebke Hüster, com fezes de seu cachorro.
Foi no sábado 11 de fevereiro. Alguns dias antes, Hüster publicou uma crítica desfavorável sobre uma criação recente de Goecke, In the Dutch Mountains, para o Nederlands Dans Theater, companhia em que é diretor associado. No sábado 11, ele estreava outro trabalho, Faith – Love – Hope, com o Balé da Staatsoper Hanover, onde era então diretor artístico. Foi no intervalo do programa da noite que o coreógrafo abordou a crítica, questionando o motivo de ela estar lá, dizendo que ela não era mais bem-vinda na casa, ameaçando impedir sua entrada, acusando-a de ser responsável pelo recente cancelamento de ingressos comprados para a temporada, e, depois, esfregando as fezes de seu cachorro no rosto da crítica.
Em seu texto, Hüster ressalta elementos da estrutura de In the Dutch Mountains, a característica frequentemente fragmentária do trabalho de Goecke, e um problema desse efeito, que, nessa obra particularmente, deixaria o público alternando, segundo ela, entre a loucura e o tédio, com alguns poucos minutos geniais e coerentes aparecendo de tempos em tempos. Ela compara a obra com um rádio que não está bem sintonizado, e culpa o coreógrafo pelo resultado: uma obra desfocada e quebrada, notavelmente abaixo do padrão do elenco do NDT.
Hüster criticou meia dúzia de obras de Goecke, algumas delas de forma extremamente positiva. Eles se conheceram pessoalmente apenas na ocasião do ataque, e o coreógrafo, sob investigação criminal, continua sem se desculpar propriamente com a crítica. Ele foi demitido do Balé da Staatsoper Hanover, e, mais recentemente, suspenso de sua posição no NDT.
O NDT inicialmente defendeu Goecke e a manutenção de sua posição no dia 14 de fevereiro. A companhia só mudou de ideia dia 23, depois que recebeu uma carta assinada por críticos teatrais da Alemanha, demandando que se posicionassem, sobretudo frente à questão da liberdade de imprensa. Como resposta, o posto de Goecke foi suspenso, e ele não criará um novo trabalho na próxima temporada do NDT.
Um grande incômodo com a situação tem sido a resposta do coreógrafo, que diz que se desculpa, mas que também se diz justificado, e de fato culpabiliza a vítima de seu ataque. Ele se justifica como se tivesse sido provocado, e como se a provocação demandasse uma resposta — essa resposta.
As reações de Goecke sugerem um certo desequilíbrio. Enquanto culpa a crítica, também reclama da reação das pessoas a seu ataque: ele diz que esperava iniciar um debate sobre a relação entre dança e crítica, mas as pessoas negativamente se focaram nas fezes do cachorro. Basicamente, pensou em jogar no ventilador, mas jogou mesmo foi no rosto da crítica.
Procurando casos similares, o New York Times conversou com críticos que declaram certa estranheza ao comportamento do coreógrafo. Um deles, depois de publicar uma crítica no HuffPost em 2016 diz ter recebido um email de Goecke perguntando quem era ele pra criticar os trabalhos dos maiores coreógrafos do mundo. Sem receber resposta à provocação, o coreógrafo teria escrito ainda mais uma vez, pra chamar o crítico de covarde.
Com a estrela na barriga, Goecke aparentemente se sente no direito de atacar críticos contrários a seus trabalhos. Agora, também fisicamente. O coreógrafo estreia entre dois e sete trabalhos novos todos os anos, há duas décadas. Sua produção ultrapassa as 60 coreografias, algumas deles recebendo boa atenção. Seria exagero esperar que todas elas fossem realmente incríveis. Seria exagero até esperar que fossem todas boas. Não são. Um tanto do que se vê são variações das mesmas formas. Repeteco que às vezes passa até a impressão cruel de “se eu já vi uma, eu já vi todas”.
É uma questão do trabalho de produção em escala, em série. Por aqui no Brasil, teremos esse ano mais uma chance de discutir as repetições de Goecke: (pela quarta vez,) a São Paulo Companhia de Dança vai apresentar (ainda mais) um trabalho do coreógrafo em sua temporada, em junho. O gosto pelo trabalho deste artista amarra um pouco a boca, e já foi motivo pra uma confusa noite só de obras suas pela SPCD, e de uma crítica minha em 2010 que talvez abrisse espaço pra um ataque com fezes de cachorro.
Se as críticas são justas, se são bem fundamentadas, ou se são expressões pessoais — esses são assuntos que sempre importa discutir, questionar, problematizar. O mesmo vale para as síndromes de estrelato, e as percepções que alguns artistas têm de sua própria magnitude. Mas esse ataque à crítica seria o equivalente a críticos jogarem m*rda no palco, durante o agradecimento de uma apresentação da qual não gostaram, e é claramente inaceitável.