Na floresta
Assistir a uma obra é como atravessar uma floresta: a floresta está dada, mas a sua experiência com ela depende dos seus interesses
As palavras pra falar de estar em contato com uma obra sempre me deram problemas. Eu lembro de um tanto de estudo, na época da faculdade, que tratava em termos de um desvendamento: o leitor desvendando o livro através da leitura. E, em paralelo, o espectador desvendando a dança. Não gosto. Não me parece uma boa imagem. Deixa uma sugestão de que a obra é uma coisa escondida por um pano, quase como se fosse um truque de mágica, e a nossa missão fosse descobrir “a verdade”, aquilo que se esconde atrás da ilusão.
Falar de “entender” também me deixa com dúvidas. A ideia de “entender a obra” parece muito direta. Como se a obra fosse uma informação que eu não sei e preciso saber. Como se ela fosse um dado, um número, uma quantidade, um nome. E aquilo que a gente sente com a cena é de uma outra ordem. Não é exatamente um entender a obra, mas um entender da obra, pela obra, por causa da obra, através da obra.
Eu sempre achei bastante complexa essa dinâmica de quanto de mim espectador afeta o como eu lido com obra a que eu assisto. E pensar na simbiose dessa relação é uma coisa incrível. A obra é um conteúdo inteiro, concreto, externo, com o qual eu entro em contato, ainda sendo eu, mas sendo eu dentro desse outro ambiente.
Ecossistêmica, a minha interpretação preferida dessa co-existência está na imagem da floresta. Lidar com uma obra seria uma forma de atravessamento. Enquanto espectadores, entramos juntos na mesma floresta. Chegamos a essa floresta com instrumentos, informações, bagagens e propósitos distintos. Aquilo a que temos acesso é, de certa forma, igual para todos. Porém a nossa experiência nessa floresta é de fato única.
A floresta pode ter caminhos e trilhas pre-definidos. Você pode seguir um desses caminhos ou não. Você pode se emaranhar pelos arbustos, pode voltar a sua atenção pras flores, pras aves. Ou então pode subir em uma das árvores e tentar ver de cima o desenho desse território. Você pode iluminar o caminho ou aproveitar a luz natural. Pode comparar o que encontra com o que mais conhece, mas também pode se deslumbrar por algo que existe ali e talvez você nunca tenha visto antes.
O meu gosto por essa imagem tem a ver com como ela representa a concretude da obra. Com todos os seus elementos, arranjos, associações, dependências. Essa planta onde vive esse animal, que faz parte desse ciclo, por causa do qual aquela outra situação passa a ser possível. Tudo isso está lá. Tudo isso faz o sistema continuar vivo. Quando penetramos esse território, podemos perceber algumas dessas tantas relações. E a nossa experiência, nesse sentido, pode ser extremamente única. É o meu interesse que guia o meu atravessamento da floresta, e me faz ver isso e isso aqui, e não aquilo e aquilo la.
Na mesma floresta, outras pessoas encontrarão coisas que podem parecer completamente distintas, e, ainda sim, são parte desse ecossistema. Nenhuma delas é a certa. Nenhuma delas é mais próxima da verdade. A floresta está lá. Ela é. Ela não precisa ser revelada, descoberta, explicada. Mas ela pode ser atravessada, sentida, experienciada. Atravessamos.
[Ao longo de 2021, os textos publicados na 3ºsinal receberam o apoio da Lei Emergencial Aldir Blanc do município de São Paulo, que viabilizou uma série de ações como a 3ºsinal e a reformulação do site Outra Dança]